Homem de 62 anos, vítima de trabalho escravo, foi usado para pegar empréstimo
O agricultor Adão Spinola trabalhou por 15 anos em uma fazenda de fumo onde raramente via a cor de dinheiro. Grande parte do tempo embriagado pela cachaça trazida pelo seu empregador, ele dormia em uma casa sem banheiro ou cozinha que ficava dentro da fazenda, na zona rural do município de Venâncio Aires, no Rio Grande do Sul.
Mas, ainda que não tivesse acesso à água tratada ou a condições mínimas de segurança e higiene, o agricultor possuía acesso a empréstimos bancários – e uma alta dívida.
Adão só descobriu que devia R$ 180 mil reais ao Banco do Brasil quando foi resgatado de situação análoga ao trabalho escravo no último dia 15. O empréstimo não havia sido contratado por ele, e sim pelo seu patrão, Atelor Luís Bald. O fumicultor utilizava o nome do empregado para obter crédito subsidiado no banco, e também como fiador em seus próprios empréstimos.
Mas Adão nunca lidou com tanto dinheiro, nem mesmo com o valor completo do seu próprio salário. “As vezes me davam pouco dinheiro, as vezes não. De uns três anos para cá, eu não pude comprar nem um sapato”, afirma. “Dava só para a bóia, e às vezes faltava ainda.”
O patrão nega que tenha se beneficiado sozinho, e argumenta que ambos eram “parceiros” no negócio. Mas, segundo os auditores fiscais do trabalho, o valor era usado para financiar as culturas de milho e de fumo que eram propriedade de Atelor, dono da fazenda onde trabalham sete empregados. Seis deles moram no local de trabalho, em quatro casas como aquela onde morava Adão.
“O Atelor chegava com um papel e o Adão assinava de boa fé. Ao longo do tempo, criou-se uma relação de completa dependência,” diz o auditor fiscal do trabalho Rafael de Andrade Vieira. “Eu acho muito estranho que a instituição financeira aceite ele como fiador, porque ele não tinha bem nenhum”.
Entre 2004 e 2018, Atelor e Adão fizeram contratos de “parceria agrícola”. Esses contratos são comuns na região, onde um trabalhador cede um espaço da fazenda para que outro cuide dela, em troca de parte da produção. Porém, para os auditores, era claro que não se tratava de uma parceria, mas de uma relação entre patrão e empregado. Além de controlar o dinheiro, era Atelor quem determinava como era a feita a produção e as suas regras.
A cidade de Venâncio Aires é a maior produtora de tabaco do país, e a produção dessas propriedades acaba na mão de grandes empresas, muitas delas exportadoras do produto. O fumo produzido por Atelor era vendido para as empresas CTA (Continental Tobaccos Alliance) e Tabacos Marasca. A sua esposa mantém um contrato de integração com as duas companhias, comprando sementes e insumos da empresa e se comprometendo a vender ao final da safra. A CTA e a Tabascos não foram responsabilizadas pelo caso.
Adão morava no mesmo local onde ficava o forno usado para secar as plantas de fumo, que permanecia imundo mesmo duas semanas após a ação dos auditores. Ali, o trabalhador fazia suas refeições em um fogão improvisado no chão. A água, invariavelmente suja, ele retirava de um açude próximo a sua casa. Sem banheiro, ele era obrigado a improvisar na vegetação próxima a sua casa.
Nos quinze anos em que esteve neste emprego, Adão desenvolveu um problema de alcoolismo. Ele conta que pouco bebia antes de morar ali, mas essa foi a maneira que encontrou para lidar com a situação. Muitas vezes ele só conseguia dinheiro do patrão para sustentar os seus vícios. “Eu só via cinco, dez pilas, quando eu precisava para comprar um cigarro ou um outro vício aí.”
Em alguns momentos de embriaguez, Adão conta que foi agredido pelo patrão, com quem discutia constantemente. “Ele me deu muito soco, comigo bêbado. Quando eu dizia uma coisa que ele não gostava, quando eu pedia alguma coisa e ele negava”.
A situação ficou tão grave que ele pensou diversas vezes em se matar, e diz que isso poderia ter acontecido se passasse mais tempo na chácara. “Eu estava bom para ficar morto, me jogar numa água aí e morrer,” diz.
A falta de pagamentos de salários e a entrega de bebidas alcoólicas cooperaram para que o crime de trabalho escravo fosse caracterizado, segundo a auditora auditora fiscal Lucilene Pacini.
O empregador culpa o próprio trabalhador pela situação em que vivia. Argumenta que, quando Adão chegou, havia uma mangueira que levava água potável ao local. “Há quatro anos atrás ele veio para cá, tinha água, tinha chuveiro, só não tinha vaso. Aí ele consumiu com tudo”, diz Atelor. “Ele simplesmente não cuidou. Ele tinha que preservar e não preservou”.
Adão recebeu o seguro-desemprego para trabalhadores resgatados, equivalente a três salários mínimos, além de cerca de dez mil reais em um acordo com o antigo empregador. Mas os valores não são garantia para o futuro, e Adão ainda tem grandes preocupações financeiras. Uma é a busca da aposentadoria rural, que pretende conseguir no próximo ano. A outra, é “limpar o nome no Serasa”.
Após sair da plantação de fumo, Adão parece uma pessoa totalmente distinta daquela encontrada pela fiscalização, quando estava embriagado e usando roupas sujas. Calmo, hoje ele diz que evita guardar ódio do que aconteceu ali.
Ele foi colocado em uma casa de atendimento para idosos na cidade de Cruzeiro do Sul, a pedido do Ministério Público do Trabalho. Já não bebe e pretende ir morar com uma parente em breve. Sobre novas perspectivas depois dos 15 anos de exploração diz: “Já tenho 62 anos, eu tenho esperança de viver, só isso”.