Jovem de 15 anos, sobrevivente de Suzano, vive com bala alojada e bolsa de colostomia
Quem vê Jenifer Silva Cavalcanti, 15, supermaquiada e andando, ainda que devagar, não percebe as marcas que a garota carrega física e emocionalmente.
Ela é uma das 11 pessoas feridas que sobreviveram ao massacre ocorrido na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano (Grande SP). Cinco estudantes, duas funcionárias, um empresário e os dois atiradores morreram.
Nesta segunda-feira (13), o ataque completa dois meses, e Jenifer ainda está convalescente. A menina entrou na mira de Guilherme Taucci, 17, e foi baleada duas vezes.
“Eu caí no chão e fiquei imóvel, na mesma posição, fingindo estar morta porque o Guilherme estava checando se havia alguém vivo ali”, disse à Folha em sua primeira entrevista após o episódio.
Depois de baleada, presenciou a morte do colega Samuel. “O Guilherme exigiu do Samuel pedidos de clemência para viver”, conta. Samuel Melquíades Silva de Oliveira, 16, morreu com um tiro na cabeça e caiu sobre os pés de Jenifer.
O primeiro tiro que a acertou transpassou seu ombro esquerdo. Mas o segundo é que ainda a impede de voltar à vida normal de adolescente. Esse atingiu o abdômen, perfurou o intestino e parou numa região próxima à coluna. O projétil permanece dentro do corpo da menina.
A adolescente contou que mesmo baleada conseguiu sair do colégio e andar em busca de socorro. “Quando eu vi que eles [atiradores] estavam distantes, me levantei e saí correndo. Entrei na casa de um vizinho da frente e aguardei até uma ambulância chegar.”
Jenifer ficou sete dias internada em um hospital de Mogi das Cruzes (Grande São Paulo). Lá, passou por cirurgia para a inserção de uma bolsa de colostomia.
O uso do equipamento, diz ela, paralisou sua vida. “Eu ainda não consegui voltar à escola porque é constrangedor fazer a limpeza da bolsa fora de casa.”
Entre os 11 feridos, a estudante é a única que ainda vai precisar retornar à mesa de cirurgia, para refazer o trânsito intestinal que foi danificado pelo tiro. “A bolsa tem mexido muito até com a minha vaidade. Eu só vou saber quando irei tirá-la na próxima consulta, em junho”, explicou.
O procedimento é semelhante ao que foi submetido o presidente Jair Bolsonaro (PSL). Ele conviveu por meses com uma bolsa de colostomia junto ao corpo após ser vítima de um ataque à faca em Juiz de Fora (MG), na campanha eleitoral do ano passado.
Afastada da Raul Brasil por tempo indeterminado, Jenifer foi autorizada a fazer trabalhos escolares de casa para não atrasar os estudos —ela cursa o 1º ano do ensino médio. O tempo livre é ocupado por programas na TV, leitura e cliques nas redes sociais.
A mãe, Zileide da Silva Cavalcanti, 43, disse que passou por um dos piores dias da vida quando soube que a filha estava entre os feridos. “Ela é a nossa filha única. Pense você o que eu vivi”.
Jenifer não tem ódio dos atiradores. “Eles tomaram a medida mais drástica que é tirar a vida de uma outra pessoa. Só sinto pena deles.”
O processo de recuperação, diz ela serviu para pensar em seu futuro. “Passei por tantos tratamentos e decidi que tenho paixão pela enfermagem. Quero cuidar de pessoas”.
A realização do sonho profissional será custeado pela indenização que ela receberá do governo do estado.
Acompanhada da Folha, Jenifer também visitou o muro da Raul Brasil, que virou uma lousa de recados às vítimas.
Reconheceu nomes dos amigos, se sentiu aguçada a voltar às aulas e percebeu mudanças na estrutura física do colégio. “Só espero que tudo volte logo ao normal”, disse.
A Raul Brasil implementou um pacote de ações para aumentar a sensação de segurança na unidade, uma das principais reivindicações da Associação de Pais.
No portão principal do prédio, por onde os atiradores tiveram acesso facilitado, quem chega precisa se identificar em um interfone automático. Só depois, um funcionário libera ou não a entrada.
No saguão, uma parede erguida desde a semana passada delimita o acesso de pessoas de fora apenas à área da secretaria. Antes, qualquer pessoa poderia circular livremente, a partir dali, por salas, corredores e pátio do colégio.
Foram instaladas mais 16 câmeras e contratados dois seguranças, que se revezam no monitoramento da escola por 24 horas ao longo da semana.
Também foi criado um acesso exclusivo ao Centro de Línguas, projeto que fica nas dependências do colégio. Ainda está prevista a instalação de catracas biométricas nos acessos.
Mas nem todo esse esforço impediu a saída de estudantes após o massacre. Um levantamento ao qual a Folha teve acesso mostra que 76 alunos pediram transferência da Raul Brasil entre 13 de março e 30 de abril.
Antes do atentado, o colégio possuía 1.058 estudantes distribuídos entre os anos finais (6º ao 9º) do ensino fundamental e do médio, segundo a secretaria de Educação da gestão Doria (PSDB).
O período da manhã sofreu a maior baixa, com 43 transferências. No entanto, a direção apontou no mesmo levantamento que entre março e abril registrou a entrada de 46 novos alunos. A matrícula na rede pública paulista é georreferenciada, ou seja, um sistema direciona o estudante para a escola mais próxima da casa dele.
Segundo uma professora que conversou com a Folha sob a condição de anonimato, muitos dos alunos que foram deslocados para a Raul Brasil ainda não apareceram.
Outros três professores e um inspetor continuam afastados da função por questões psicológicas.
Para a contadora Juliana dos Santos Fernandes Ribeiro, porta-voz da Comissão de Pais da Raul Brasil, a luta agora é pela continuidade do apoio psicológico aos atingidos pela tragédia. “Dentro da escola, há psicólogos, mas fora dela, não. Queremos uma solução urgente.”
Reportagem da Folha mostrou que ao menos 1.179 pessoas afetadas de alguma forma pelo massacre procuraram a rede de saúde mental de Suzano, mas não foram atendidas.
O município tem apenas 14 psicólogos, que estão com jornada de trabalho sobrecarregada em quatro Caps (Centro de Apoio Psicossocial).
Como resposta ao problema, o governo de João Doria publicou na última quinta-feira (9), no Diário Oficial do Estado, o empenho de R$ 2,2 milhões para ações de saúde mental em Suzano. O recurso será usado na contratação de psicólogos.
Da FSP