Livro narra caso de mulher que se travestiu para lutar na Guerra do Paraguai
Uma mulher brasileira, quase menina, esteve perto do que foi Joana d’Arc. Chamava-se Jovita Alves Feitosa. A cearense de 17 anos, que vivia no interior do Piauí, soube dos abusos cometidos contra as brasileiras pelos paraguaios no Mato Grosso. Era início de 1865, e a Guerra do Paraguai mal havia começado.
Indignada, a jovem de traços negros e indígenas juntou-se a dezenas de homens que pretendiam atuar na também chamada Guerra da Tríplice Aliança. Andaram por mais de 350 km até chegar a Teresina.
Na cidade, cortou os cabelos e se vestiu com trajes masculinos, tal qual a francesa da Guerra dos Cem Anos —ou Diadorim, a donzela guerreira de “Grande Sertão: Veredas”. Mas logo foi descoberta como mulher, o que não impediu Franklin Doria, o presidente da província do Piauí, a aceitá-la como voluntária no posto de segundo-sargento. O presidente da província tinha atribuições semelhantes às exercidas hoje pelo governador.
Jovita se tornou uma celebridade nacional, o que é espantoso se pensarmos num tempo sem rádio ou TV, num país com pequena parcela de letrados —mesmo Jovita era semianalfabeta. Na viagem de um mês de Teresina ao Rio, o navio com os voluntários da pátria passou por capitais, onde ela foi tratada de forma triunfal. Ganhou homenagens em teatros lotados e foi louvada em poesias de tom patriótico nos jornais.
Quem conta essa saga é José Murilo de Carvalho, um dos maiores historiadores do país e membro da Academia Brasileira de Letras. “Jovita Alves Feitosa – Voluntária da Pátria, Voluntária da Morte” é o primeiro livro da Chão, editora voltada a registros históricos e memórias.
Carvalho estará em uma das mesas da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), em julho. Além disso, terá uma de suas obras fundamentais relançadas nas próximas semanas. Com edição da Todavia, “Forças Armadas e Política no Brasil” vai incluir textos novos que contemplam os últimos anos de influência militar no país. E ainda neste ano sai nova edição de “Pontos e Bordados – Escritos de História e Política” pela Topbooks.
Prestes a completar 80 anos, Carvalho amplia sua obra a passos largos, a começar pela biografia de Jovita. “Percebi que ela era um exemplo extraordinário de consciência política naquela época”, diz.
O autor se preocupou em apresentar a jovem em contexto de formação inicial de uma identidade nacional. Nem sempre existiu essa clareza. Como conta Carvalho, houve uma tendência entre os historiadores durante os governos militares de avacalhar com a Guerra do Paraguai. “A palavra não é bem essa [risos]. Enfim, tratá-la de maneira negativa. Falar mal da Guerra do Paraguai e dos militares brasileiros que dela participaram era, nessa visão, como falar mal dos militares que estavam no poder naquele momento.”
Consolidou-se, então, uma concepção equivocada de que todo alistamento para essa guerra tinha sido compulsório. “Houve um surto absolutamente inesperado de identidade, patriotismo”, diz. “Foi o primeiro momento em que boa parte do país ousou se sentir como membro de uma comunidade nacional.”
Segundo Carvalho, “Maldita Guerra”, de Francisco Doratioto, foi um livro importante para mudar a histografia dos conflitos entre Brasil e Paraguai.
O autor também situa Jovita na tradição de mulheres guerreiras. Em meados de 1865, prevaleceu a exaltação à coragem da jovem cearense, mas ela recebeu críticas duras. Não cabia a uma mulher atrevimentos dessa ordem, diziam os detratores, que vá a guerra como enfermeira.
No jornal Diário de São Paulo, um autor que assinava sob o pseudônimo de Roceiro na Capital lamentou a decisão do Piauí de “receber uma sujeitinha como voluntário da pátria”. Lembrou que havia surgido na Bahia outra mulher, “uma grandessíssima negra”, que também se apresentava para os combates. “Isso só a tronco, compadre”, arrematou o Roceiro. A abolição dos escravos só seria assinada 23 anos depois.
O leitor deve se lembrar, como dito acima, do subtítulo do livro, “Voluntária da Pátria, Voluntária da Morte”.
O Ministério da Guerra proibiu a ida de Jovita para o combate e bancou a viagem dela de volta ao Piauí. Não bastasse a decisão, ela foi rejeitada pela família e por Franklin Doria, o presidente da província.
Resolveu, então, retornar ao Rio. Sem dinheiro, tornou-se “uma elegante do mundo equívoco”, na expressão do jornal carioca Correio Mercantil. Em 1867, aos 19 anos, mais uma decepção: o amante inglês a abandonou. Como constatou o dr. Façanha, subdelegado do bairro da Glória, Jovita se matou com uma punhalada no coração.
Da FSP