Mudanças de Doria na educação esbarram em problemas básicos das escolas
O governador João Doria (PSDB) anunciou mais uma mudança para a rede estadual de ensino, válida a partir do ano que vem. Os estudantes terão uma aula a mais por dia, serão sete aulas com 45 minutos de duração. Atualmente, a jornada é de seis aulas com 50 minutos cada.
Para chegar à nova formatação, o governo reduziu o tempo dedicado às disciplinas tradicionais, como Português e Matemática. A aula a mais será dedicada a componentes extracurriculares. Serão ao todo cinco aulas semanais, uma dedicada à tecnologia, duas eletivas e duas chamadas “projetos de vida”, em que os estudantes poderão desenvolver atividades em prol de seus objetivos futuros.
Segundo o governo, a ideia é que as escolas ofertem um feirão de aulas eletivas no início do ano para discutir conjuntamente quais serão as opções ofertadas, com base nos interesses e projetos de vida dos estudantes e nas formações e vocações dos professores. Estão previstos temas como empreendedorismo, educação financeira e comunicação não-violenta, que devem ser desenvolvidos.
A mudança vale para toda a rede estadual composta por 5,4 mil escolas, com atendimento a 3,6 milhões de alunos. São ao todo 1.540 escolas de Ensino Fundamental I, 3.734 escolas de Ensino Fundamental II e 3.646 escolas de Ensino Médio. [uma mesma escola pode ter mais de um ciclo. Por isso, a soma supera o total de unidades].
O governador João Doria se manifestou em seu Twitter, afirmando que as mudanças integram o Programa Inova Educação que é feito em parceria com o Instituto Ayrton Senna, organização sem fins lucrativos que defende a agenda da educação integral e a aquisição de competências cognitivas e socioemocionais, como resiliência e abertura ao novo, para melhorar a capacidade de aprendizagem.
A instituição tem como presidente a psicóloga e empresária Viviane Senna, irmã do piloto Ayrton Senna; o educador Mozart Neves Ramos, que chegou a ser cotado para ministro da Educação mas teve o nome vetado pela bancada evangélica, que atua como diretor de articulação e inovação; e o economista chefe Ricardo Paes de Barros.
O educador, doutor em Ciências (Química) pela USP e professor da Universidade Federal do ABC, Fernando Cássio, aponta que a estratégia utilizada para ampliar o tempo na escola se dá à custa da diminuição das aulas que já existem e que isso pode trazer impactos. “Todo professor que está em sala de aula sabe que ela [a aula] tem um fluxo do início ao fim, a chegada do professor, o tempo de organização dos estudantes e o trabalho de fato. Quando se reduz esse tempo, se prejudica o trabalho feito”, avalia.
Cássio não se diz contra a ampliação de possibilidades no currículo para os estudantes, mas entende que as mudanças apresentadas não dialogam com a questão nevrálgica das escolas de São Paulo. “Estamos falando de aulas eletivas para escolas profundamente debilitadas do ponto de vista de infraestrutura, que não têm material didático, água, luz, que carecem de reformas estruturais, não têm internet rápida ou muitas vezes computadores. Se temos esse tipo de carência, se não cumprimos nem o básico, como podemos pensar em ampliar o leque de oportunidades? Precisamos primeiro cumprir o básico”, questiona.
O especialista não desconsidera a possibilidade da experiência servir de vitrine para interesses que estão para além da qualificação da rede. “Como para venda de produtos, para promover as instituições parceiras ou catapultar projetos eleitorais daqui um tempo.”
A reorganização do tempo das aulas não é a primeira mudança apresentada pelo governador João Doria. No final de abril, também ficou definido que os estudantes da rede terão quatro períodos de férias a partir de 2020. Atualmente, o calendário da rede estadual prevê dois períodos de férias de meados de dezembro a 31 de janeiro e de 28 de junho a 30 de julho.
No ano que vem, os estudantes terão uma semana de férias em abril, duas semanas em julho, uma semana em outubro, e 30 dias entre dezembro e janeiro. A alteração garante os 200 dias letivos previstos por lei, mas, segundo o governo, pode melhorar o nível de aprendizagem dos alunos.
“Longos períodos de férias são prejudiciais à aprendizagem, principalmente para as crianças em condições de mais vulnerabilidade. Aqueles que podem viajam com as crianças, mas quem está nas redes estaduais e municipais não consegue viajar, fica em casa assistindo TV”, declarou à imprensa o secretário de Educação Rossieli Soares.
A co-deputada com a Bancada Ativista Anne Rammi, mantenedora do blog Mamatraca, percebeu que a mudança dividiu opiniões. “Se por um lado há mães e famílias que conseguiriam encontrar apoio no cuidado com seus filhos por tempos menores, mais fracionados, por outro lado as que já têm essa rotina organizada se surpreenderam com a medida”, coloca.
Ela entende que a medida pode até ser benéfica, mas não concorda com a forma como foi conduzida, “de forma autárquica, de cima pra baixo, sem diálogo com os movimentos, com mães, professores e, sobretudo, as crianças. O governador justifica ter consultado grupos que não sabemos quais são e se baseado em evidências que também desconhecemos”, critica.
Para Anne, o que precisa ser debatido é como o Estado se posiciona diante o dever constitucional de apoiar as famílias no cuidado com as crianças (artigo 227). “O único equipamento social que existe nessa política do cuidado é a escola. Tem a família e a escola, não há mais nada que olhe por essas crianças. O Estado não tem cultura, lazer, esporte, aí chegamos ao dilema: qual o compromisso do Estado de apoiar as mulheres mães no cuidado prioritário das crianças?”, questiona.
Ela finaliza: “o que quero dizer é que quando alteramos as férias estamos tratando da forma como o Estado legisla, muda nossas vidas e não reflete que precisamos dividir esse cuidado de forma intersetorial”.