No Brasil em crise, apps se tornaram o símbolo dos empregos mal-remunerados
Em 2017, Vilson Nobre tinha um emprego de carteira assinada em uma transportadora de valores. Depois de meia década como segurança em carros blindados, na tensa rotina de abastecer caixas eletrônicos espalhados pela Grande São Paulo, recebeu a notícia de que seus serviços não eram mais necessários. Aos 32 anos, pai de três filhos, viu-se dependente do salário da esposa, funcionária do departamento de Recursos Humanos de uma empresa. A conta não fechava.
Sem perspectiva de encontrar um emprego fixo, Nobre seguiu o caminho de um contingente cada vez maior de desempregados no Brasil. Inscreveu-se no aplicativo Uber e começou a trabalhar como motorista de praça. Há dois anos, é daí que ele completa a renda da família. Nobre passa de 12 a 18 horas por dia, de segunda a segunda, atrás de um volante.
É a única maneira de faturar 6 mil reais por mês. Um bom ganho diante da média nacional, não? Em termos. Do total, ele repassa de 20% a 35% para o aplicativo, a depender da corrida. Uma outra parte substancial paga a manutenção do automóvel próprio e o consumo da gasolina. No fim das contas, Nobre leva para casa cerca de 2,5 mil reais, caso consiga trabalhar no ritmo descrito acima. Se ficar doente ou tiver qualquer outro contratempo e não trabalhar, não ganha.
O ex-segurança mantém a esperança de encontrar um emprego estável e menos desgastante. Nas poucas horas vagas, distribui currículos pela metrópole. “O Uber foi criado para complemento, não sobrevivência”, avalia o motorista, que mantém um canal no YouTube chamado “Ryan Nobre”, no qual compartilha as agruras do dia a dia em meio ao caótico trânsito paulistano.
As relações de trabalho mediadas por aplicativos tornaram-se a mais dinâmica força de geração de emprego precário no País. Segundo pesquisa do Instituto Locomotiva, apps como Uber, iFood e Rappi seriam os maiores “empregadores” brasileiros caso se unissem em uma única companhia.
Nos últimos anos, diante do aprofundamento da crise econômica e da destruição das vagas formais, esse grupo de empresas virtuais, em geral sediadas no exterior, passou a intermediar a oferta de trabalho intermitente e mal-remunerado para 4 milhões de entregadores e motoristas.
Mais famoso entre os aplicativos, o Uber virou até sinônimo da precarização do mercado. Muitos acadêmicos denominam essa nova fase das relações capitalistas de “uberização” do trabalho.
A reforma trabalhista aprovada pelo governo Temer em 2017, pá de cal na histórica CLT, conjunto de normas que protegiam os empregados desde os anos 1930, pavimentou a estrada para a prosperidade dos aplicativos. Uma das alterações mais radicais foi a permissão da terceirização em todos os níveis da atividade empresarial, o que permite tratar qualquer funcionário como autônomo.
A partir de 2015, quando a recessão atingiu o auge, as condições do mercado de trabalho começaram a piorar ano a ano, conforme um estudo do Dieese, departamento de pesquisa ligado aos sindicatos. Após uma década de crescimento das vagas com carteira assinada, a reversão aconteceu em velocidade recorde.
O Brasil registra hoje a segunda maior taxa de desemprego das Américas, 12,7%, atrás apenas do Haiti, ilha miserável do Caribe destruída por seguidos desastres naturais. E fica em quarto lugar entre um grupo de países pesquisados pela OCDE, o clube das nações desenvolvidas.
“O cenário atual é de lento crescimento da ocupação a partir de empregos precários, o que é completamente diferente da situação verificada até 2014. E, diante da conjuntura econômica atual, há poucas possibilidades de melhora do mercado de trabalho para os próximos anos”, conclui o estudo.
Segundo Clemente Ganz Lúcio, diretor do Dieese, a reforma trabalhista foi aprovada justamente para legalizar situações antes consideradas ilegais pela CLT, a exemplo das relações estabelecidas pelos aplicativos. “As mudanças no mundo do trabalho são radicais. É uma flexibilidade de jornada, de condições, de salário e o fim da conexão física do patrão com o empregado”.
Tendência inevitável? No caso dos aplicativos, avalia Ganz, não. Para amenizar os problemas, acredita, seria necessária uma intervenção do Estado que garantisse condições mínimas de trabalho. “Dizer que a flexibilização das leis trabalhistas gera mais emprego é uma balela. Não foram criados novos postos de trabalho, apenas se trocou vagas formais por relações precárias. E o desemprego continua a subir.”
Como companhias transnacionais em sua maioria ou que operam em ambientes desregulados, os aplicativos conseguem facilmente escapar das leis locais. A batalha de governos contra o Uber tornou-se um símbolo das limitações dos Estados nacionais diante do processo de globalização. Algumas nações, entre elas a Alemanha, simplesmente proíbem o aplicativo. Outras, Brasil incluído, testam modelos de regulação, sem muito sucesso.
A falta de uma intervenção estatal eficiente empurra as divergências para os tribunais. Tornaram-se comuns na Justiça do Trabalho os processos nos quais os motoristas alegam vínculo empregatício com a empresa, embora os advogados da companhia de origem norte-americana alegam que o Uber não passa de um serviço de tecnologia que conecta passageiros e condutores.
Não foi essa a compreensão do juiz Bruno da Costa Rodrigues, da 2ª Vara do Trabalho de Campinas, região metropolitana de São Paulo. Em uma sentença proferida em abril deste ano, o magistrado deu ganho de causa a um motorista e reconheceu a existência de vínculo entre o trabalhador e o aplicativo.
Embora não tenha sido a primeira decisão semelhante no País, Rodrigues construiu uma sólida argumentação na sentença. Segundo ele, não se pode admitir “alegorias jurídicas ou normativas” na busca de ocultar a exploração do trabalho em atividade econômica, bem como não se deve aceitar “roupagens formais” que visam a fuga da proteção social ao trabalho. Para o magistrado, o Uber não deve ser considerado uma “plataforma digital facilitadora”, mas uma “plataforma digital que utiliza a tecnologia da informação para dirigir uma atividade econômica que lhe é própria”, no caso, o serviço de transporte.
A interpretação do juiz é parecida com aquela da 15ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho, que também reconheceu a existência de vínculo entre o Uber e um motorista. A desembargadora Beatriz Lima Pereira, relatora do processo, escreveu em sua decisão que o condutor não possui verdadeira autonomia e é obrigado a obedecer as regras de conduta impostas pelo aplicativo.
Há outros pontos, afirma Caio Meloni, advogado trabalhista e pesquisador do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital, vinculado à USP. O Uber, avalia Meloni, alega que quem contrata a empresa é o próprio motorista, quando na realidade o aplicativo faz uma verificação da “elegibilidade para dirigir na plataforma”, tal como anunciado no site. “Além da seleção no momento de admissão, a empresa também controla o trabalho de seus motoristas, punindo em razão de notas baixas, quando há reclamações ou quando o motorista deixa de aceitar corridas”.
O Uber enfrenta o mesmo tipo de demanda judicial no exterior. Em 2016, a justiça britânica estabeleceu que motoristas cadastrados no aplicativo eram empregados e ordenou à empresa que recolhesse os devidos impostos trabalhistas.
“Reconhecer o vínculo é essencial para garantir uma proteção mínima aos trabalhadores e trabalhadoras da empresa, sobretudo no que diz respeito ao pagamento de horas extras, intervalos de descanso, responsabilidade por acidentes de trabalho, férias, depósitos de FGTS, dentre outros direitos previstos em nosso ordenamento jurídico”, elenca Meloni.
Quem presta serviços para os aplicativos fica ainda distante do regime de previdência, caso não faça contribuições por conta própria, situação da maioria. O iFood e o Rappi são as únicas empresas a exigir um CNJP aos interessados em integrar suas plataformas digitais. Daniel Freitas, ex-estudante de Engenharia de 32 anos, foi obrigado a abrir uma microempresa antes de se tornar um entregador.
Com uma média de 20 entregas de comida por dia, Freitas chega a faturar 2 mil reais mensais. “O bom trabalhador merece um apoio caso apareça um imprevisto”, afirma, em uma reprodução do argumento usado pelo departamento jurídico da companhia que lhe oferece serviços. Para os aplicativos, é mais uma medida de proteção: como cada entregador é uma microempresa, as relações tendem a ser interpretadas pela Justiça como casos de terceirização, previstos na reforma de 2017.
Ter uma microempresa em seu nome obriga Freitas a contribuir mensalmente para o INSS, o que em tese irá lhe garantir uma aposentadoria por idade. Quem não tem nenhum tipo de registro fica ao Deus dará. Eduardo Fagnani, professor do Instituto de Economia da Unicamp e um dos maiores especialistas em contas públicas do País, considera pouco provável que trabalhadores de baixa renda consigam poupar por conta própria para a Previdência. “Talvez um empregado consciente faça, mas é muito difícil, pois entre pagar uma conta e guardar para a aposentadoria, a tendência é optar pela primeira.”
Tomemos o caso de Freitas como exemplo. Para conseguir uma aposentadoria equivalente aos seus ganhos atuais, de 2 mil reais, o entregador teria de economizar 500 reais por mês durante 30 anos. “Trabalhar 18 horas por dia quando se é jovem é fácil, fazer isso aos 60 é outra história”, afirma Fagnani.
Enquanto trabalhadores como Freitas são obrigados a aceitar as condições de sobrevivência impostas pelo mercado, os criadores dos aplicativos não têm do que reclamar. Em novembro do ano passado, o iFood recebeu um aporte de 500 milhões de dólares de investidores e mira a internacionalização das atividades.
O Rappi, aplicativo que oferece de compras em supermercados a encomendas de farmácias, é avaliado em mais de 1 bilhão de dólares. E estima-se que o Uber, quando abrir o capital na Bolsa de Nova York, poderá alcançar a marca de 120 bilhões de dólares.