Parentes de Bolsonaro devolviam 90% dos salários
Uma luz de alerta piscou no Palácio do Planalto quando o jornal O Globo divulgou, na terça-feira 14, a decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) de quebrar os sigilos bancário e fiscal de 95 pessoas e empresas ligadas ao antigo gabinete do primogênito do presidente, Flávio Bolsonaro, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Dos nomes elencados pelo Ministério Público estadual, nove eram de parentes de Ana Cristina Siqueira Valle, a segunda mulher de Jair Bolsonaro e mãe do filho mais novo do presidente, Jair Renan.
Outros três parentes de Ana Cristina, com quem Bolsonaro viveu em união estável por dez anos, entre 1998 e 2008, ainda foram lotados, por ele próprio, em seu gabinete quando era deputado federal em Brasília. Para além da possibilidade de configurar nepotismo, as nomeações revelam novos indícios da prática da “rachadinha”, quando assessores são nomeados para repassar parte — ou a totalidade — do salário ao político que os nomeou.
Nesta semana, o Ministério Público (MP) apontou indícios da existência de uma “organização criminosa” no gabinete de Flávio Bolsonaro em relatório que descreve detalhes de movimentações financeiras suspeitas envolvendo assessores parlamentares desde o ano de 2007. O material, com 87 páginas, foi apresentado à Justiça do Rio para pedir as quebras de sigilo bancário e fiscal de Flávio Bolsonaro e outras 94 pessoas, sob suspeita dos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa.
Advogada, Ana Cristina Valle conheceu Bolsonaro em Brasília, quando ambos participavam de uma manifestação de mulheres de militares que pediam aumento nos salários da caserna. Ficou mais conhecida nas eleições do ano passado, quando disputou, sem sucesso, uma vaga na Câmara dos Deputados. Ela usou o nome do ex nas urnas. Em 1998, mesmo ano em que nasceu Jair Renan, foi transformada pelo vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ) em assessora-chefe de seu gabinete na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro.
Durante a campanha eleitoral de 2018, veio a público o processo litigioso de sua separação de Jair Bolsonaro. Em viagem à Noruega, onde viveu por cinco anos, a advogada acusou Bolsonaro de ameaçá-la durante a disputa pela guarda do filho do casal. Passados dez anos do episódio, e apoiadora da campanha do então candidato do PSL, Ana Cristina negou as acusações que havia feito anteriormente. Atualmente, ela trabalha como assessora do vereador Renan Marassi (PPS-RJ) na Câmara dos Vereadores de Resende, município no sul do Rio de Janeiro.
Foi ela a ponte para que a família Siqueira Valle começasse a integrar a extensa lista de funcionários do clã Bolsonaro, há cerca de 20 anos. Uma pessoa próxima contou que os parentes nomeados nunca fizeram o trabalho de assessoria parlamentar. De quatro em quatro anos, a única coisa que faziam era distribuir santinhos no período de campanha pela reeleição de Flávio e Jair Bolsonaro. De acordo com essa pessoa, ao menos dois familiares admitiram que repassavam cerca de 90% dos salários para os parlamentares.
Jair Bolsonaro e Ana Cristina Valle passaram a viver juntos em 1998. A família dela morava em Juiz de Fora, em Minas Gerais, e foi levada pela então mulher do deputado para viver em Resende. Lá, Ana Cristina começou a recrutar, entre familiares e amigos próximos, interessados em trabalhar para o clã Bolsonaro. A estratégia da ex-mulher do presidente, segundo a fonte, era perguntar quem desejava “dar o CPF” para “arrumar cargo” no gabinete do marido.
Entre 2000 e 2007, surgiram nas listas de funcionários do gabinete do deputado federal Jair Bolsonaro os nomes de integrantes da família Siqueira Valle. A primeira foi uma prima de Ana Cristina, chamada Juliana Siqueira Vargas, então estudante e agora funcionária da Caixa Econômica Federal. Dois anos depois, em outubro de 2002, foram nomeadas a mãe, Henriqueta Guimarães Siqueira Valle, e a irmã de Ana Cristina, Andrea Siqueira Valle. Nenhuma das duas completou o ensino fundamental e ambas trabalharam boa parte da vida como donas de casa. Andrea é fisiculturista, vai à academia duas vezes por dia e também vive de bicos como manicure e faxineira.
Mais tarde, em 2006, vieram André Luiz Procópio Siqueira Valle, irmão de Ana Cristina e músico, e André Luiz de Siqueira Hudson, primo e técnico em informática. A transparência da Câmara dos Deputados não disponibiliza os salários de assessores anteriores a 2012. Ao longo de todo esse período, o escritório político de Jair Bolsonaro sempre ficou em uma casa no bairro de Bento Ribeiro, na capital fluminense.
Com o tempo, as nomeações dos integrantes da família de Ana Cristina passaram a ocorrer também no gabinete de Flávio Bolsonaro, eleito deputado estadual na Alerj a partir de 2003. Andrea e Juliana saíram do gabinete de Jair Bolsonaro e passaram a constar como funcionárias de seu primogênito. Com elas, vieram vários outros.
Entre as nomeações está a do pai de Ana Cristina, o representante comercial José Cândido Procópio da Silva Valle. Também integram a lista os primos Francisco Diniz e Daniela Gomes e os tios Guilherme Hudson, Ana Maria Siqueira Hudson, Maria José de Siqueira e Silva e Marina Siqueira Diniz.
Na Alerj, os integrantes da família tinham salários superiores a R$ 4 mil. Guilherme Hudson e Ana Maria Hudson, tios de Ana Cristina, recebiam salário bruto de R$ 9.800 cada um enquanto trabalhavam para Flávio. A irmã Andrea e os primos Juliana e Francisco tinham salário bruto de R$ 7.300. Já as tias Maria José e Marina e a prima Daniela recebiam R$ 4.400, R$ 5.900 e R$ 6.400, respectivamente.
Durante todo o período em que constaram como funcionários tanto de Jair Bolsonaro como de Flávio, os familiares viviam em Resende. A exceção fica por conta de Andrea Siqueira Valle, que no final do ano passado se mudou para Guarapari, no Espírito Santo.
Desde que a investigação sobre o caso envolvendo Fabrício Queiroz se tornou pública, os integrantes da família Siqueira Valle passaram a conviver com a iminência de se tornarem alvos. Em gravações a que ÉPOCA teve acesso, dois deles relembram as devoluções, em dinheiro vivo, de 90% do salário que um deles recebia como funcionário de Flávio na Alerj.
Com a quebra do sigilo bancário e fiscal dos parentes de Ana Cristina Valle — e de outras 86 pessoas e empresas — autorizado em 24 de abril, o MP também passará a investigar Flávio Bolsonaro e os integrantes da família, tanto pelas devoluções de salários como pela existência de funcionários-fantasmas e ainda pela prática de nepotismo.
A quantidade de parentes lotados nos gabinetes pode configurar nepotismo na opinião de dois especialistas que falaram em tese sobre o caso. De acordo com Guilherme France, pesquisador de Direito na Fundação Getulio Vargas no Rio de Janeiro (FGV-Rio), a Súmula Vinculante nº 13 do Supremo Tribunal Federal (STF) proíbe o nepotismo nos Três Poderes e abrange tanto estados e municípios como as Assembleias Legislativas estaduais. “Os princípios da moralidade e da impessoalidade deveriam estar presentes nas contratações. A ausência da Súmula, à época, não impede que a situação do nepotismo seja avaliada caso a caso”, explicou France, ao mencionar que a Súmula reuniu os entendimentos legais em 2008.
Segundo o advogado Manoel Peixinho, especialista em Direito Público, um parlamentar pode em um caso como esse responder por improbidade administrativa, mesmo após o término do mandato do parlamentar. “Em tese, o parlamentar estaria violando a Súmula nº 13 do STF, que define o nepotismo nos Três Poderes”, disse Peixinho. “De imediato, o MP poderia pedir a exoneração de todos os parentes, se ainda estiverem vinculados ao gabinete.” Além disso, explicou o advogado, o parlamentar que contratar parentes pode ser considerado inelegível. “Se os parentes forem nomeados sem trabalhar no gabinete, terão de devolver os recursos que receberam como salário aos cofres públicos.”
Guilherme France lembrou que as contratações de parentes também ferem o Decreto 9.727 editado neste ano pelo presidente e que impõe regras para pessoas que desejem ocupar cargos em comissão e funções comissionadas na administração federal direta, incluindo autarquias e fundações. Pelo decreto, foi fixado até processo seletivo para as contratações, com análise de currículos, capacidades e outros quesitos. “Ele mesmo ( o presidente ) estabeleceu um decreto para a nomeação, e possivelmente essas pessoas não cumpririam esses requisitos”, afirmou France.
A investigação começou há um ano, quando o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) enviou ao órgão um Relatório de Inteligência Financeira (RIF) segundo o qual Fabrício Queiroz, o ex-policial que trabalhou como motorista para Flávio, movimentou R$ 1,2 milhão de maneira atípica no período de um ano, entre 1º de janeiro de 2016 e 31 de janeiro de 2017. O relatório incluía o depósito, feito por Queiroz, de um cheque de R$ 24 mil na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro. Mais tarde, veio à tona que o filho do presidente também havia sido notado pelos fiscalizadores ao efetuar 48 depósitos de R$ 2 mil cada, em espécie, em sua conta corrente, um total de R$ 96 mil.
Queiroz alegou que as movimentações suspeitas eram frutos dos “rolos” que fazia com a venda de carros usados. Depois, informou que o dinheiro sacado de sua conta servira para pagar cabos eleitorais no interior do estado. O presidente, por sua vez, avisou que o cheque depositado na conta de sua esposa constituía o pagamento de uma dívida de R$ 40 mil que o ex-motorista tinha com a família.
Para justificar os depósitos estranhos que efetuou no caixa eletrônico da Alerj, Flávio, que foi deputado estadual entre 2003 e o ano passado, disse que o dinheiro era parte de um pagamento que havia recebido pela venda de um imóvel no bairro de Laranjeiras.
Além do afastamento de sigilo de Flávio e de seu ex-assessor Fabrício Queiroz, também serão averiguadas as informações bancárias da mulher de Flávio, Fernanda Bolsonaro, da empresa de ambos, a Bolsotini Chocolates e Café Ltda, das duas filhas de Queiroz, Nathalia e Evelyn, e da mulher do ex-assessor, Marcia. Em dezembro passado, um relatório do Coaf revelou uma movimentação atípica de R$ 1,2 milhão na conta corrente de Queiroz entre janeiro de 2016 e o mesmo mês de 2017.
Os sigilos de oito assessores do gabinete de Flávio na Alerj, que transferiram dinheiro para a conta de Queiroz, também foram quebrados por decisão do juiz Flávio Nicolau, do TJRJ.
O Palácio do Planalto e o senador Flávio Bolsonaro não responderam aos contatos da reportagem.
Da Época