Proposta de cobrar mensalidade em universidade pública é jogo desonesto
Leia a coluna de Vladimir Safatle, professor de filosofia da USP, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”.
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Uma velha má ideia
É muito interessante perceber como funciona o sistema de circulação de ideias entre nós. Na semana passada, por exemplo, o Brasil conheceu uma série de manifestações que mobilizaram mais de 1 milhão de pessoas em ao menos 170 cidades contra o ataque à educação nacional.
Logo depois, começaram a circular as arquiconhecidas propostas a respeito da necessidade de pagamento de mensalidades em universidades públicas, seja de forma extensiva, seja inicialmente para a pós-graduação.
Essas propostas aparecem sazonalmente. Elas sempre voltam —ora prometendo dinheiro para a educação, ora cavalgando na retidão moral e na indignação ética daqueles que julgam um absurdo o suor do povo financiar a educação da elite.
No entanto, elas pecam em uma série de raciocínios: são o exemplo clássico de uma velha má ideia.
Um deles se refere a quem são, de fato, os alunos das universidades públicas. Depois de anos girando em torno de falsas percepções alimentadas por setores da imprensa e da classe política, dados concretos apareceram, enfim.
Há poucas semanas, a Andifes (associação que representa os dirigentes das universidades federais) publicou um estudo sobre o perfil dos estudantes das universidades públicas brasileiras.
Os números são impressionantes e eles se referem a 2018: 51,2% são negros, 54,6% mulheres e 70,2% têm renda per capita de até 1,5 salário mínimo. Além do que, 60,4% dos alunos graduandos passaram por escolas públicas.
Esses números simplesmente fazem cair por terra o discurso de que, por meio das universidades públicas, o Estado financiaria a formação de sua elite econômica.
Ao contrário, as universidades se tornaram, nos últimos anos, um dos raros espaços na vida nacional no qual há um retorno efetivo de investimentos para setores pauperizados e vulneráveis da sociedade. Cobrar mensalidade seria, mais uma vez, socializar os custos da crise para os mais pobres.
Nessas horas, sempre aparecem aqueles que julgam ter a fórmula mágica munidos da palavra “bônus”, “voucher” ou similares. Daremos vouchers e bolsas para os mais pobres.
Sim, para os 70,2% mais pobres. Nota-se claramente a racionalidade de um sistema que não seria aplicado a 70,2% dos casos, pelo menos. Isso, é claro, se princípios elementares de renda forem respeitados.
Pois, se há pessoas realmente preocupadas com o destino das universidades, haveria caminhos muito mais justos e racionais. Que tal cobrar de quem pode pagar? É fácil descobrir quem pode pagar.
As pessoas pagam Imposto de Renda, seus rendimentos estão lá, mesmo que conheçamos uma elite especializada em sonegar e esconder seus rendimentos reais.
Os que têm maiores rendimentos deveriam pagar pela educação dos mais pobres, ou seja, eles deveriam pagar um imposto vinculado à educação descontado diretamente de seu Imposto de Renda.
Independentemente do fato de seus filhos estudarem ou não no sistema público, de eles serem mandados ou não para estudar no exterior, as famílias mais ricas deveriam ser obrigadas a retornar à sociedade sob a forma de contribuição tributária.
No entanto, por alguma razão difícil de explicar, propostas dessa natureza não são discutidas, já que o jogo todo consiste em tentar vincular, na opinião pública, o binômio mensalidades/justiça social.
Um jogo desonesto, baseados em distorções evidentes, que apenas serve a dois propósitos. O primeiro consiste em desobrigar ainda mais o setor mais rico da população a um mínimo de solidariedade social.
Pois é claro que só assim é possível preservar a aberração de um país que praticamente não tributa renda, que permite que um banqueiro e um empresário paguem 27,5% de impostos de renda.
O segundo é a expulsão dos setores mais pauperizados da universidade pública, mais uma vez. Pois já ouvimos discursos governamentais que afirmam que não necessitamos de “tantos diplomas”.