Universidades federais chegam ao limite do sufocamento
A Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) tem motivos para acompanhar com atenção redobrada as manifestações desta quinta-feira (30). Como suas congêneres – e talvez como nenhuma outra, pelas particularidades listadas a seguir –, a instituição encontra-se no cruzamento entre as crises do ensino superior e da pesquisa, agravadas no governo de Jair Bolsonaro (PSL).
Além de constar entre as mais castigadas pelos cortes no orçamento da Educação, a universidade completa 40 anos em 5 de julho e recebe, dali a duas semanas, a 71ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC).
“A notícia da nossa escolha foi recebida com muito entusiasmo por toda a comunidade em 2017”, relembra a pró-reitora de Planejamento, Orçamento e Finanças, Dulce Maria Tristão. “É a primeira vez em 70 anos que o nosso estado sediará um evento de ciência e tecnologia desse porte e dessa importância para o país.”
Quando candidatou o campus de Campo Grande a sediar a edição de 2019, o reitor Marcelo Turine não tinha como adivinhar o grau de aperto e incerteza atingido neste trimestre pelas sete dezenas de universidades federais e em particular a que ele comanda, embora a Emenda Constitucional 95 (do teto de gastos) já projetasse então sua sombra sobre os próximos 20 anos da administração pública.
A pró-reitora conta que a preparação do encontro, para o qual são esperadas 15 mil pessoas da comunidade acadêmica, está sendo muito prejudicada pelo bloqueio. “Estamos buscando o máximo de parceiros locais e regionais, mas não teremos como fazer a grande festa da ciência e da educação que imaginávamos”, lamenta. Ficou pelo caminho, por exemplo, o plano de realizar as atividades no estádio Morenão. Quanto à celebração das quatro décadas, será “muito simples”.
A UFMS teve grande parte dos seus “chocolates” bloqueados – mais precisamente, 43% de seu orçamento discricionário (ou seja, de livre movimentação) para custeio. O ministro da Educação Abraham Weintraub usou guloseimas para demonstração, mas o assunto é dinheiro para pagar luz, água, limpeza, segurança.
O bloqueio das verbas para investimentos é ainda maior: 88%. “Tínhamos R$ 28 milhões orçados, R$ 24 milhões foram bloqueados e agora contingenciados mais R$ 955 mil”, narra Tristão. A pró-reitora lembra que a UFMS tem nove campi, distribuídos por diversas regiões do Estado – a exemplo das fronteiras com a Bolívia e o Paraguai e as divisas com Mato Grosso e São Paulo. “Em alguns deles, o asfalto ainda não chegou.”
Ela calcula que, se não houver novas liberações, o dinheiro para honrar os compromissos acaba em junho. “A partir de julho não teremos mais recurso para pagar novos compromissos ou sequer os já efetivados”, alerta.
“Nossos recursos de capital também vêm caindo ano a ano, e desde 2016 a perda evoluiu para um percentual maior”, relata o reitor da Universidade Federal do Pará (Ufpa), Emmanuel Tourinho. Ele explica que o montante disponível para investimentos era por volta de R$ 80 milhões e agora não passa de R$ 9 milhões, dos quais só metade está acessível.
O dirigente lembra que a instituição ainda está com o processo de expansão em andamento e havia iniciado muitas obras. “Nosso planejamento foi comprometido e não pudemos concluí-las no prazo previsto. Temos salas, laboratórios e prédios [com a construção interrompida] e até um campus em funcionamento em instalações alugadas, por falta da verba necessária para construir os prédios acadêmicos e administrativos.”
Já a verba para o pagamento de serviços e manutenção, que era de R$ 163 milhões há cinco anos, caiu para R$ 108 milhões. “O montante original já é insuficiente, porque os contratos são reajustados todo ano”, conta.
A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) explica que, embora o contingenciamento/corte tenha sido determinado de forma linear (mesmo percentual, de 30%), ele atingiu as destinatárias de forma diferenciada, porque foi aplicado com base nos programas e não nas unidades. Se uma linha voltada a extensão, por exemplo, perdeu recursos, o baque é maior para as instituições que põem mais peso nesse tipo de ação. A entidade sindical lançou um painel que detalha a situação orçamentário-financeira caso a caso. Segundo a ferramenta, os R$ 2,08 bilhões congelados no momento prejudicam 1.336.977 estudantes e colocam em risco 5.118 cursos e 398.100 vagas.
“Essa disposição está se mostrando muito nociva, entre outras coisas, porque já estamos trabalhando com orçamento muito rebaixado”, diz a coordenadora da Frente Parlamentar pela Valorização das Universidades Federais, Margarida Salomão (PT-MG). “O valor da previsão de custeio para este ano é mais ou menos a terça parte do que se pretendia em 2014.” Ela avalia como insuficiente o recuo do governo, que depois dos protestos nas ruas liberou R$ 1,59 bilhão de reserva do Tesouro para evitar um novo contingenciamento.
Margarida constata a existência de obras interrompidas do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) em todas as regiões. “Os recursos estão praticamente zerados por causa da Emenda Constitucional 95. Essa é a faca que está amputando a educação brasileira”, afirma.
O Brasil de Fato procurou o MEC para se posicionar sobre a situação das instituições federais; sobre as reiteradas declarações do presidente Bolsonaro e do ministro Weintraub contra as ciências humanas e a produção científica; e sobre a busca de alternativas no governo que evitassem os cortes na Educação, como a cobrança efetiva de grandes devedores do Tesouro ligados ao agronegócio, aos bancos e outros setores empresariais.
Quanto à busca de alternativas, a Assessoria do MEC informou que a discussão sobre temas como anistia da dívida rural, correspondente a R$ 17 bilhões sonegados, cabe à equipe econômica. As demais questões não foram respondidas.
Sessenta organizações integram a Iniciativa para a Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br), pensada para corpo a corpo no Congresso Nacional e com pontes com a pauta educacional. No dizer da deputada Margarida Salomão, o apoio ao ensino superior agrega até representantes “de convicções muito distantes” nas duas casas legislativas. A convocação do ministro Weintraub à Câmara foi aprovada por 307 votos a 82. Somente o PSL e o Novo orientaram a bancada a rejeitar o pedido.
As duas lutas ligam-se não só pela formação e aprimoramento de pesquisadores, mas também porque a maior parte da investigação científica acontece nas universidades públicas.
Segundo o Jornal da USP (Universidade de São Paulo), elas representam 43 das 50 instituições que mais publicaram trabalhos científicos no Brasil nos últimos cinco anos – uma contribuição que supera 95% do total, afirma o presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Luiz Davidovich. Completam a lista de líderes cinco institutos de pesquisa ligados a ministérios (Embrapa, Fiocruz, CBPF, Inpa e Inpe), um instituto federal e uma universidade particular. Das 43 universidades citadas, 36 são federais e sete estaduais.
De acordo com pesquisa de maio do Atlas Político, 51,5% da população brasileira são contra a tesourada na educação e 57% considerou relevantes os protestos contra a medida.
“A classe média sempre teve a universidade como a sua prerrogativa e seu orgulho, e não quer abrir mão disso”, observa Margarida Salomão. “E, hoje, engrossando esse caldo, você tem as classes populares, que, graças aos governos Lula e Dilma, conseguiram conquistar como um direito seu o que era um privilégio de outros. As universidades hoje habitam o imaginário das classes populares como um sonho possível.” Ela avalia que isso explica a envergadura da mobilização popular em torno dessa bandeira.
Levantamento da Andifes mostrou que 70,2% das alunas e alunos de universidades públicas são de baixa renda, até 1,5 salário mínimo, e mais da metade são pardos e pretos. Essa porcentagem, assim como a de indígenas (atualmente 0,9%), subiu entre 2014 e 2018.
“Estrangular as universidades e os institutos federais é um crime contra a juventude brasileira e a nossa perspectiva de desenvolvimento”, conclui a coordenadora da frente parlamentar, acrescentando que a expectativa é de manifestações ainda mais volumosas que as de duas semanas atrás.
Do BdF