A ausência de política para povos indígenas é em si uma política
Leia a coluna de Thiago Amparo, advogado, professor de políticas de diversidade na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos humanos e discriminação.
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A não questão indígena
Quem coordenará a atual política nacional para povos indígenas que, na prática, inexiste? Um dia após adotada a lei que redefine a estrutura do governo federal, o presidente Bolsonaro, por meio de uma medida provisória, recolocou sob o guarda-chuva do Ministério da Agricultura a competência de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas. Isto é grave.
O motivo? Reverter decisão do Congresso Nacional, que havia colocado demarcação de terras indígenas sob o comando do Ministro da Justiça. “O Legislativo não pode fazer o que fez. A iniciativa de mudar [MP] é privativa nossa”, esbravejou o presidente nesta semana. Esquece o mandatário, no entanto, que a Constituição Federal postula ser “vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada” pelo Congresso. Ao que indica o texto constitucional, é o Executivo que não pode fazer o que fez.
Inexistência atual de uma política federal para povos indígenas já é em si mesmo uma política. Para tanto, há de se considerar o contexto em que a retórica federal sobre povos indígenas se dá hoje.
Por um lado, não ter uma política indigenista referenda o conflito no campo. Acirram-se as tensões no campo, para ocupação de terras indígenas com o intuito de fomentar a produção agrícola ou exploração mineral ilegais. A combinação de flexibilização do porte de armas e a subordinação da política indigenista ao setor agropecuário põe lenha nos conflitos agrários.
Dados da Comissão Pastoral da Terra revelam que o ano de 2017 foi o mais violento no campo desde 2003 por conta de grandes chacinas. Investiga-se que neste mês o prefeito de Itaituba, no Pará, tenha ameaçado receber à bala funcionários da Funai. Flexibilizações no Código Florestal e o uso do Fundo da Amazônia para indenizar desapropriações se inserem igualmente neste contexto.
Por outro lado, não ter uma política indigenista é justificado pelo governo por meio de uma errônea linguagem de empoderamento econômico dos próprios povos indígenas. A retórica de que se está trazendo progresso aos povos indígenas faz parte do mito fundacional do que hoje conhecemos como Brasil. E, como todo e qualquer mito, é uma inverdade que a certos ouvidos soa muito bem. A retórica do progresso econômico para indígenas soa bem para setores econômicos interessados em explorar tais terras.
Neste mês, os ruralistas derrubaram o general presidente da Funai, quem os acusou de “salivar ódio aos indígenas”. Soa bem para parte do eleitorado bolsonaristas, em especial em regiões rurais, quem por vezes sonha com mitos de rios de minérios preciosos em terras indígenas.
O que tal retórica esquece ou, melhor, omite é que política indigenista não se dá num vácuo regulatório. Instrumentos internacionais como a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007, e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, sobre os Direitos dos Povos Indígenas e Tribais, de 1989, reconhecem o direito de povos indígenas ao consentimento livre, prévio e informado sobre medidas que os afetem, bem como o direito à reparação, inclusive em casos de remoção forçada.
O que tais regras estabelecem, ao lado da Constituição de 1988, não é que terras indígenas são imaculadas, mas sim que cabe somente aos povos indígenas o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes em suas terras de acordo com suas tradições, ao passo que inexiste direito à indenização àqueles que ilegalmente as ocuparem. Opor direitos de povos indígenas e desenvolvimento econômico mais serve à retórica política do que à efetivação de uma política indigenista que algum sentido faça dentro dos marcos legais existentes.
Retrocesso na política indigenista não é privilégio deste governo. Dados do Instituto Socioambiental (ISA) mostraram uma queda acentuada na homologação de terras indígenas nos últimos governos (FHC homologou 145 terras indígenas, Lula 87 e Dilma parcas 21 terras indígenas, apenas perdendo para Temer que nenhuma terra homologou nos dados até setembro de 2017).
Dada a complexidade e os conflitos inerentes a qualquer processo de demarcação, não se espera que seja apenas uma questão de matemática – quanto mais, melhor. No entanto, a queda consideravelmente acentuada de terras homologadas, juntamente com tensões em projetos de desenvolvimento promovidos por governos anteriores como no caso das hidrelétricas de Belo Monte e São Luiz colocam em contexto os retrocessos atuais deste governo na questão indigenista. E contexto em época de polarização importa.
Com 42 terras delimitadas aguardando decisão do governo Bolsonaro desde o fim do ano passado, o presidente afirmou esta semana que não vai assinar nenhuma nova reserva indígena no Brasil. “A questão de reserva indígena quem decide, na ponta da linha, sou eu”, afirmou nesta semana o presidente no melhor estilo Luís XIV: a política indigenista sou eu.
Certa feita escreveu Machado de Assis em uma crônica de jornal de 1892, parafraseando Sêneca, “não é a tempestade que me aflige, é o enjoo do mar”.
Ao paralisar a demarcação de terras indígenas, ao desidratar a Funai de sua principais competências e ao politizar a questão indígena entregando-a ao Ministério da Agricultura – ao invés de deixá-la sob a guarda de um órgão técnico como a Funai – Bolsonaro vai além da ineficiência de governos anteriores: institucionaliza no organograma do governo federal um conflito secular – e tal medida pode impactar a longo prazo os direitos dos povos indígenas no Brasil.
Não é a tempestade da nova MP que me aflige, mas o enjoo deste mar a longo prazo.
Da FSP