A única coisa decente que o Senado tem a fazer: derrubar o decreto das armas
A única coisa decente que o Senado tem a fazer nesta terça, se quiser continuar com a espinha ereta, é derrubar os decretos das armas.
O que se puder mudar, depois, por projeto de lei, então, que se mude. E que fique claro: não vejo vício de inconstitucionalidade no primeiro decreto, o que trata da posse; o segundo, que altera, sim, a posse e também o porte, é inconstitucional porque recorre ao instrumento do decreto para MUDAR UMA LEI.
Não pode. E, sim, o segundo decreto, em particular, também remete a questões que são de natureza constitucional. A coisa é bem mais grave do que parece.
No discurso que fez em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, o presidente disse com todas as letras.
o presidente disse com todas as letras que, mais do que o Parlamento, precisa mesmo é do povo. Bem, o Senado terá de dizer se o Congresso é ou não relevante.
Mas não é só isso, não.Ainda mais grave é esta fala do presidente: “A nossa vida tem valor, mas tem algo muito mais valoroso que nossa vida, que é a nossa liberdade. Além das Forças Armadas, defendo o armamento individual para o nosso povo, para que tentações não passem na cabeça de governantes para assumir o poder de forma absoluta.
Temos exemplos na América Latina e não queremos repeti-los e, confiando no povo e nas suas Forças Armadas, esse mal cada vez mais se afasta de nós”.
O que vai acima, creiam, é uma alusão, ainda que ainda que encoberta, à luta armada.
Observem que ao relativizar a vida como valor absoluto — e é isso o que faz o presidente —, há uma espécie de admissão tácita de que o armamento, na forma como ele o propõe, traz, sim, riscos adicionais à segurança das pessoas.
Pois ele está disposto a correr esse risco — com a vida alheia, é claro!, já que a sua própria é hoje, e assim continuará, guardada por seguranças armados até os dentes.
Mas o que importa? Na cabeça de Bolsonaro, a tal “liberdade” — dita assim, como valor abstrato — está acima da vida, o que faz supor que uma pessoa pode ser, a um só tempo, morta e livre.Ah, é claro! Na luta contra as tiranias, as pessoas podem optar por correr riscos. Mas também há o avesso dessa entrega meritória, que é o terrorismo suicida, que é sempre e necessariamente, antes de mais nada, homicida. O terrorista suicida não entrega a sua vida à causa se não for para provocar estragos nas hostes adversárias ou na população civil desarmada.Como se nota, o binômio “vida-liberdade” pode ser bem mais complexo do que supõe a filosofia vã do nosso pensador.
O que é chocante nessa fala de Bolsonaro é que o horizonte que tem em mente é mesmo o da luta armada.Já indaguei aqui e reitero: o que teriam feito ou falado as Forças Armadas se uma conversa como essa tivesse saído da boca de Lula ou de Dilma?
A constatação seria uma só: “Ah, eles querem armar o povo porque estão pensando na revolução comunista”
O armamento de Bolsonaro, como se nota, viria, então, para enfrentar, sei lá, o comunismo. Mas com que armas lutaria o tal comunismo se a acusação que a extrema-direita pespega contra as esquerdas é justamente a de desarmar o povo para facilitar a dominação?
Ora, com esse povo, então, desarmado, como se imporia o comunismo se as Forças Armadas, estas sim, armadas continuarão? E certamente não haverá um só oficial-general honesto, da ativa ou da reserva, que negue o óbvio: o PT aparelhou as Forças Armadas — ou por outra: deu-lhes armas e infraestrutura.
Assim, os decretos do armamento de Bolsonaro nem servem como política de segurança pública — e isso o governo já admite — nem como uma prefiguração da luta contra o comunismo. Esse discurso, como resta evidente, é destituído de qualquer sentido lógico. Se fosse honesto, seria uma burrice.
Mas eu desconfio também da sua honestidade. Acho que estamos diante de uma das mais vulgares e mesquinhas verdades: os decretos sobre as armas servem apenas ao lobby das armas. Que, histórica e mundialmente, sempre pagou bem.
Sim, há uns poucos que defendem o armamento maximizando a tese da legítima defesa. Contra os fatos e contra os dados. Têm ao menos a virtude da ingenuidade. Se virtude for.
De UOL