E se fosse o juiz do Flávio?
A irracional fulanização de todos os assuntos nacionais turva a capacidade de análise de amplos setores da sociedade e coloca questões complexas e com graves consequências para a vida institucional do País sujeita à falsa dicotomia do bem contra o mal. O fenômeno é amplo, vem se agravando desde 2013, e se repete no caso, que completa uma semana hoje, do vazamento de conversas entre o ex-juiz Sérgio Moro e procuradores da Lava Jato.
Para se analisar corretamente a gravidade do que está em curso e como os apoios de hoje são gelatinosos e podem mudar amanhã, proponho um exercício de abstração. Suponhamos que em vez de Moro e Deltan Dallagnol, os diálogos divulgados pelo The Intercept Brasil se dessem entre o juiz e o procurador do caso Fabrício Queiroz-Flávio Bolsonaro, que completa seis meses ainda envolto numa névoa de explicações mal dadas e de iniciativas tíbias por parte do sempre combativo Ministério Público.
Qual seria a reação do presidente Jair Bolsonaro neste caso? Como reagiria ao ler/ouvir os procuradores do caso do “garoto” confabulando com o juiz que, cedo ou tarde, teria de julgá-lo? Daria o mesmo apoio que deu ao seu ministro da Justiça, sem saber ainda a totalidade dos diálogos que estão em poder do site que os vem ministrando a conta-gotas?
Evidentemente, a resposta é não. E ela pode ser extrapolada de Bolsonaro para a claque inflamada que vem defendendo Moro nas redes sociais. Vale o exercício, da mesma maneira, para o caso de amanhã ou depois o tal site divulgar uma conversa de Rogério Favreto, que mandou soltar Lula num domingo, com os advogados do petista, por hipótese.
Desfulanizar é essencial para todos os que querem fazer uma análise honesta intelectualmente deste que é o caso mais complexo jurídica, ética e politicamente posto diante do Brasil desde que a Lava Jato surgiu como uma operação policial e rapidamente foi elevada a categoria política, sendo fundamental inclusive para levar ao cenário que resultou na eleição do próprio Bolsonaro.
Não é aceitável, sob pena de se condescender com a quebra dos pilares que garantem a existência do Estado Democrático de Direito, que todos finjam que não viram que evidentemente Moro, Dallagnol e demais procuradores exorbitaram os limites – constitucionais, éticos, funcionais – que deveriam nortear suas atuações. E os fizeram cientes dos riscos, uma vez que outras operações anteriores foram anuladas justamente por vícios formais.
Portanto, seria bom que eles, bom estrategistas que são, entendessem que dificilmente vai colar o mantra “não há nada de ilegal ali” que entoam, com diferentes ênfases, desde domingo. Algum tipo de capitulação e pedido de desculpas terão de fazer, uma tentativa de separar o joio das maquinações do trigo das importantes revelações, provas, condenações e ressarcimento de valores que, graças ao seu trabalho inovador e corajoso, a Lava Jato legou ao País. Não como heróis a serem defendidos a qualquer preço e com base na negativa dos fatos, mas como homens públicos cientes de suas próprias falhas, porém reafirmando a lisura do produto de seu trabalho.
E que Moro, ainda tateando no ecossistema da política, entenda que a cada movimento seu no tabuleiro de xadrez virá um outro do adversário, pois ele não é mais o juiz onipotente, e sim um agente num ambiente em que se chocam múltiplos interesses, intercambiáveis, difíceis de mapear e que podem mudar ao sabor de uma revelação a mais – inclusive o apoio do chefe-pai Bolsonaro. É cedo demais para traçar prognósticos definitivos nesse caso em que conteúdo e forma das revelações ainda não estão esclarecidos. Mais cedo ainda para se tomar lados.
Do Estadão