Ficha criminal de Queiroz inclui agressão e mortes
A poucas semanas da posse de Jair Bolsonaro, um procedimento-padrão do Coaf, órgão que monitora movimentações financeiras, revelou que Fabrício Queiroz, velho conhecido do clã lotado há mais de dez anos no gabinete do senador Flávio Bolsonaro quando ele era deputado estadual, operava em sua conta bancária um suspeito esquema de coleta e repasse de dinheiro. Os detalhes foram aparecendo, Queiroz se enrolou cada vez mais e o próprio Bolsonaro, em entrevista a VEJA, admitiu que parecia haver algo esquisito nos extratos do amigo de mais de três décadas.
Uma minuciosa apuração dos problemas de Queiroz com a Justiça, empreendida por VEJA, mostra que as suspeitas contidas no relatório do Coaf não são a única mancha de seu currículo. Há mais, muito mais: mortes, agressão à mulher e, ao longo dos últimos quinze anos pelo menos, fortes vínculos com o chefão de milícia mais procurado do Rio de Janeiro, Adriano da Nóbrega.
Durante cinco semanas, a reportagem desencavou mais de vinte boletins de ocorrência e uma dezena de inquéritos que envolvem Queiroz — boa parte sem conclusão até hoje. Destes, pôde aprofundar-se nos detalhes de seis. O retrato que eles desenham é de um policial violento e temido. Bolsonaro conhece Queiroz desde quando ele foi seu recruta na Brigada de Infantaria Paraquedista, em 1984. Três anos depois, já fora do Exército, Queiroz entraria para a Polícia Militar e passaria por postos diversos até ser lotado, em 1994, no 18º Batalhão da PM, em Jacarepaguá, Zona Oeste carioca. O 18º, notório naqueles tempos pela truculência nas operações e cobranças de suborno a criminosos, fazia frequentes incursões na favela Cidade de Deus. A tropa ganhou fama na época de ouro da chamada gratificação faroeste, no início dos anos 2000, que premiava “atos de coragem” — execuções, na maioria — cometidos por policiais. No batalhão, Queiroz tem o nome atrelado a pelo menos duas mortes violentas. Em uma delas, seu parceiro era um PM que entrara no 18º em 2003 e lá permanecera por seis meses: o então tenente Adriano, atirador de primeira que anos depois chefiaria uma milícia.
Juntos, Adriano e o sargento Queiroz atiraram em Anderson Rosa de Souza por volta de 0h30 de 15 de maio de 2003, durante uma ronda justamente na Cidade de Deus. Souza morreu em consequência dos tiros, e a dupla, na madrugada, foi a uma delegacia registrar o que qualificou de auto de resistência — na sua versão, dispararam para se defender, desde sempre a licença para matar mais usada pela polícia. No inquérito que se seguiu (em que aparecem como testemunhas, em vez de atiradores, por ser deles o relato dos fatos) consta que os dois e mais quatro policiais foram atacados “por vários indivíduos armados”. Só Queiroz e Adriano revidaram à “injusta agressão”. Perseguiram os “meliantes”, que por sua vez corriam, paravam e atiravam contra os “milicianos” — este o termo usado na transcrição, que provavelmente não tinha o significado de agora. A vítima, segundo contaram Queiroz e Adriano, atuava como gerente do tráfico local.
A certidão de óbito de Souza, pai de dois filhos, técnico de refrigeração, menciona ferimentos por arma de fogo na cabeça, pulmão e baço. Passados dezesseis anos, o inquérito permanece em aberto. Já percorreu 72 vezes o caminho entre a 32ª Delegacia Policial, que investiga, e o Ministério Público, que pede mais apurações. Dezenas de idas e vindas acompanham a trajetória de outra morte de suposto traficante pelas mãos de Queiroz, na mesma Cidade de Deus, na noite de 16 de novembro de 2002 (um mês antes da chegada de Adriano ao batalhão).
Policiais escondidos em uma laje trocaram tiros com bandidos durante um baile funk. Moradores que lembram do caso — e preferem não se identificar — afirmam que o motivo do tiroteio foi o não pagamento de propina para a realização do baile, este um acordo corriqueiro entre policiais e a bandidagem. Dois rapazes ficaram feridos — um deles, Gênesis Luiz da Silva, de 19 anos, levou um tiro nas costas, que entrou pelo pescoço e saiu na altura do nariz, e morreu 25 minutos depois de chegar ao hospital. Novamente, Queiroz e outro policial, os atiradores da noite, foram à delegacia registrar o auto de resistência — mataram para se defender. Também esse inquérito está aberto, sem desfecho. Testemunhas ouvidas por VEJA contam que os PMs puseram os feridos em uma viatura e ficaram dando voltas pela favela. “O médico disse que, se o Gênesis tivesse chegado um pouco antes, teria sobrevivido”, lembra uma delas. Batizado com o nome do primeiro livro da Bíblia, que relata o começo de tudo, seu sonho era entrar para o Exército.
A memória da passagem de Queiroz pela Cidade de Deus é a de um policial que despertava medo, conhecia muito bem os becos e vielas e movimentava-se à vontade por lá. Um antigo morador, adolescente na época, disse a VEJA que, quando Queiroz dava plantão no posto policial local, sua mãe redobrava as recomendações para ele andar com cuidado e ter sempre um documento no bolso. Em outubro de 1988, Queiroz prendeu em flagrante um suposto traficante — mas acabou sendo acusado de ter tentado extorquir 20 000 reais dele. Chegou a ser investigado pela Corregedoria da PM, mas o processo definhou e morreu. A suposta vítima da tentativa de extorsão teve menos sorte: ficou presa cinco meses por suspeita de tráfico. Acabou absolvida.
Em resposta a um requerimento baseado na Lei de Acesso à Informação, o Ministério Público do Rio encaminhou a VEJA uma relação de quinze investigações em que Queiroz é citado. Alguns registros tratam de um mesmo evento, outros são de casos que correm em sigilo. As secretarias de Polícia Civil e de Polícia Militar, no entanto, ignoraram solenemente a legislação.
Diante do pedido de VEJA, a Civil informou que não poderia fornecer os dados por falta de pessoal disponível. A reportagem foi ao secretário, Marcus Vinícius de Almeida Braga, que mudou o motivo da negativa: emitiu um comunicado alegando que inquéritos policiais são sigilosos (não são, necessariamente). Já a PM não enviou informações sobre a folha corrida de Queiroz sob a justificativa de que sempre devolve a documentação ao policial quando ele se reforma (é o caso dele, que deixou a corporação em outubro do ano passado). Ignorando os registros em delegacia aos quais VEJA teve acesso, afirmou que jamais o investigou por participação em autos de resistência.
Tanto Queiroz quanto Adriano saíram do 18º Batalhão em meados de 2003, para postos diferentes. Mas Queiroz não perdeu contato nem com o colega policial, nem com a família de seu antigo capitão Bolsonaro. Por iniciativa do deputado Flávio, Adriano recebeu uma menção honrosa da Alerj. Dois anos depois, com o mesmo patrocínio, ganhou uma comenda.
Dois detalhes: 1) a entrega da comenda foi na cadeia, onde o hoje chefão miliciano estava preso e sendo julgado por homicídio (o então deputado federal Jair Bolsonaro foi ao tribunal prestar solidariedade e denunciou na tribuna da Câmara a condenação do policial, depois revertida); e 2) Flávio Bolsonaro afirma que as duas honrarias foram sugestão de Queiroz. O homenageado Adriano acabaria expulso da PM em 2014, por ligações com bicheiros. Foragido desde janeiro, ele, além da milícia na Zona Oeste, comanda o Escritório do Crime, quadrilha especializada em assassinatos por encomenda.
Não se sabe exatamente qual era a relação do sargento Queiroz com os Bolsonaro na época dos agrados a Adriano. Mas em 2007 o vínculo ficou documentado: Queiroz foi cedido formalmente pela PM ao gabinete de Flávio na Alerj. Os dois voltariam a dar uma mão a Adriano: Danielle da Nóbrega e Raimunda Magalhães, respectivamente mulher e mãe do miliciano, tornaram-se funcionárias sem crachá nem relógio de ponto do mesmo gabinete (coisa do Queiroz, garante o atual senador).
Planilhas da contabilidade da milícia obtidas por VEJA mostram que, além do salário de 6 400 reais na Assembleia, Raimunda, a mãe do “Gordinho”, como Adriano é conhecido, recebeu entre 2017 e 2018 uma ajuda de custo dos cofres da quadrilha para pagar o condomínio. Em outro reforço dos laços existentes entre a turma, no celular apreendido em janeiro de Danielle, a senhora Adriano, constam mensagens trocadas com Queiroz. O advogado dele, Paulo Klein, declarou a VEJA que a amizade entre seu cliente e Adriano sempre foi baseada em “princípios inerentes ao ofício de policial militar”.
Queiroz voltaria às fichas de ocorrência policial em 2008, quando Marcia Aguiar (por sinal, também empregada no generoso gabinete da Alerj) foi à Delegacia da Mulher de Jacarepaguá relatar ter sido vítima de “vários socos na cabeça, costela e braços” desferidos pelo marido. Solicitou uma ordem restritiva para mantê-lo longe dela e contou ter sido agredida outras vezes. Uma semana depois, foi a vez de Queiroz confirmar que o casal chegara às “vias de fato” depois de uma discussão por “motivo familiar”. Mas Marcia desistiu da medida restritiva, abriu mão de fazer o exame de corpo de delito, e em setembro de 2010 o caso foi arquivado.
A procrastinação do andamento de investigações, uma constante na vida de Queiroz, ocorreu, inclusive, no caso a que ele responde atualmente. O relatório do Coaf que levanta suspeitas sobre sua movimentação bancária chegou ao Ministério Público estadual em 3 de janeiro de 2018, quando a disputa pela Presidência já estava em andamento. Dormiu até maio, quando foi encaminhado para outro departamento. Caiu no sono de novo até agosto e só despertou com fôlego de verdade em janeiro passado, com Bolsonaro já eleito. O Ministério Público nega qualquer vínculo entre a lentidão da investigação, fruto de “diligências internas”, e o calendário eleitoral. Segundo os promotores, as apurações andaram normalmente.
Desde janeiro, quando se submeteu a uma cirurgia para a retirada de um tumor no intestino, Queiroz está sumido. Faltou a reiteradas convocações para depor, alegando motivo de saúde. Para cuidarem do pai, sua mulher e filhas, igualmente convocadas por suspeita de implicação no esquema, sumiram e não falaram à polícia. O processo se arrasta na Justiça sem que se saiba do paradeiro do principal envolvido — alegando necessidade de um tratamento de quimioterapia em São Paulo, Queiroz não tem sido localizado.
A reportagem percorreu seus endereços conhecidos na Zona Oeste do Rio. No mais frequentado, uma casa em uma vila humilde no bairro da Taquara, encontrou um pedreiro que disse que Marcia tinha estado lá recentemente e saiu carregando sacolas cheias de roupa. Um carro registrado em nome dela fica estacionado na entrada da vila. No prédio onde a ex-mulher de Queiroz, Débora, morou com as duas filhas do casal (elas também agregadas, claro, ao célebre gabinete da Alerj), o porteiro afirmou que o apartamento está vazio.
No endereço citado em um habeas-corpus impetrado pela família Queiroz contra a quebra de seus sigilos bancário e fiscal reside uma das filhas, Evelyn. A outra, Nathalia, voltou a viver e trabalhar na Barra da Tijuca. Desfaz-se assim o álibi tantas vezes repetido de que elas estavam em local desconhecido cuidando do pai. Apesar de sumido, Queiroz, aos olhos da lei, não se encontra foragido, já que não há contra ele nenhuma ordem de prisão. Enrolado no passado e no presente, o amigo do presidente ainda tem muito a esclarecer.
Da Veja