Governo quer mudar leis de trânsito e de armas sem base em dados
Duas das medidas mais polêmicas tomadas pelo presidente Jair Bolsonaro foram apresentadas sem dados técnicos que comprovem sua eficácia: a flexibilização da posse de armas e as mudanças no Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Documentos elaborados pelos ministérios da Justiça e Segurança Pública e da Infraestrutura, respectivamente, não expõem estudos ou estatísticas que justifiquem as mudanças.
Para defender a necessidade das iniciativas, o governo apresentou dois documentos. No caso das armas, a Exposição de Motivos 08/2019 foi assinada pelos ministros Sergio Moro (Justiça) e Fernando Azevedo e Silva (Defesa); e a Exposição de Motivos 36/2019, referente a alterações no CTB, chancelada pelo ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas. Elas têm em comum a ausência de pesquisas, números ou evidências acadêmicas para fundamentar as medidas.
A facilitação da posse e do porte de armas está sendo questionada no Supremo Tribunal Federal (STF), e o projeto com mudanças no CTB foi recebido com críticas na Câmara.
A principal evidência usada pelo governo para justificar o decreto que flexibiliza a posse de armas é um artigo escrito pelo chefe de assuntos legislativos de Moro, Vladimir Passos de Freitas. O documento do governo afirma que comerciantes de áreas urbanas e habitantes da zona rural convivem com um quadro “insustentável” de “mortes abusivas”. Mas o único número mencionado é o resultado do plebiscito de 2005 sobre o comércio de armas. Na época, 64% votaram a favor da venda de armas.
— Os decretos carecem de evidências. Não conseguiram provar tecnicamente que a arma tem efeito positivo na segurança pública e estruturaram as justificativas tão somente no direito individual e na liberdade das pessoas — diz o diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima.
Para o projeto de alteração do CTB, a principal justificativa é que ele “se faz necessário diante do avanço tecnológico”. Ele afirma que o objetivo é reduzir acidentes e mortes, mas também não apresenta dados.
Ao propor o fim das penalidades em relação ao uso da cadeirinha para as crianças, por exemplo, o texto diz apenas que a mudança é “providência para evitar exageros punitivos”. O uso do equipamento é tema de estudos em todo o mundo. O mais importante deles, feito pela Organização Mundial de Saúde (OMS), concluiu que o uso do equipamento reduz em até 19% a chance de lesões graves e em 60% a de mortes. No Brasil, pesquisa nacional feita no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP) constatou que a hospitalização de crianças por acidente de trânsito caiu 37% desde que o equipamento passou a ser obrigatório.
— É vida de criança. Não dá para ser decisão política. Tem que ser técnica — diz Gabriela Freitas, gerente da ONG Criança Segura.
Segundo a entidade, acidentes de trânsito são a principal causa de morte acidental de crianças e adolescentes até 14 anos no país — cinco mil casos entre 2001 e 2017.
Para por fim às multas a quem estiver com os faróis desligados nas estradas durante o dia, o argumento do governo é o desgaste causado às lâmpadas, “as quais não foram produzidas para permanecerem acesas durante todo o tempo”.
A medida contraria recomendação do Denatran, que, em nota técnica, em 2016, destacou que o farol reduz acidentes. “Muitos estudos constataram uma redução entre 5% e 10%”, diz a nota.
No caso do aumento do limite de pontuação para perda da CNH de 20 para 40 pontos, o governo expõe o seguinte motivo: “Alcançar 20 pontos está cada dia mais comum na conjuntura brasileira”. Dados oficiais do Detran de São Paulo, o maior do país, mostram que apenas 6,4% dos motoristas do estado têm mais de 19 pontos na carteira.
A proposta de acabar com a exigência do exame toxicológico para caminhoneiros é justificada pelo fato de que os testes são caros e “apresentam dúvidas sobre a exatidão”. Estudo feito pelo Ministério Público do Trabalho em 2015 constatou que 34% dos caminhoneiros usavam drogas, sendo a cocaína a mais procurada.
Procurado, o Ministério da Infraestrutura não se pronunciou sobre a falta de dados para embasar o projeto de lei. Informou que a proposta tem o objetivo de modernizar a legislação de trânsito, “que tem mais de 20 anos”. Segundo nota, é preciso “desburocratizar processos, retirar entraves, facilitar a vida do cidadão”. A pasta acrescentou: “Com a proposta encaminhada ao Congresso Nacional, o governo pretende ampliar o debate e a participação de toda a sociedade, preservando a segurança e penalizando condutas de risco”.
O Ministério da Justiça não se manifestou.