Justiça Militar investiga civis por desacato mas poupa soldados que matam
Naquela noite, Adriano da Silva Bezerra não conseguiu dormir. O braço, enfaixado, doía muito, e ele não tinha uma cama para descansar. Mesmo quando outro rapaz na cela em que estava preso em Bangu cedeu um colchão para o novato descansar por algumas horas, ele só cochilou: foi acordado por uma barata andando pelo seu corpo. “Eu não desejo um negócio daquele ali pra nenhum inimigo meu”, diz.
Aquela foi a única noite que Adriano passou na prisão, em 13 de fevereiro de 2015. Ele foi levado direto do Hospital Getúlio Vargas, na zona norte do Rio de Janeiro, para uma delegacia pelos militares que o acusavam de tentativa de homicídio e de desobediência. A razão: durante a ocupação da Maré pelo Exército, Adriano, morador da favela, não teria parado quando os soldados dizem ter mandado ele parar. Mas nem ele nem os 4 amigos que estavam no carro durante aquela madrugada viram qualquer soldado na rua. Por isso, não pararam. De repente foram baleados por 6 tiros de fuzil. O que acertou o braço de Adriano foi apenas um estilhaço de bala 7.62. O amigo Vitor Santiago Borges recebeu dois tiros e ficou paraplégico na hora.
Adriano saiu de Bangu no dia seguinte, mas seu périplo pela Justiça Militar ainda duraria quatro anos. Apesar da Promotoria Militar ter rejeitado a versão dos soldados de que o carioca teria tentado atropelá-los, manteve a denúncia por desobediência. Adriano, que jamais tinha entrado em uma cadeia, quem dirá em uma corte militar, passou quatro anos entre idas e vindas à 4ª Auditoria da 1ª Circunscrição Judiciária Militar, na Ilha do Governador. Só foi inocentado em março deste ano porque o crime prescreveu. “Eu vou falar pra você, eu tava angustiado com isso. Pensava todo dia nisso”, diz o vendedor de coco. Depois do ocorrido, ele mudou-se da Maré e do Rio de Janeiro. “Eu acho que o Exército tá muito mal preparado para entrar dentro da comunidade. Nem todo mundo que mora dentro da comunidade é bandido, é vagabundo. Tem muito trabalhador”.
A Justiça Militar difere da civil porque os juízes são em sua maioria militares fardados. Desde o ano passado, quem julga civis na primeira instância são juízes civis, monocraticamente; porém, se o condenado quiser recorrer, o Superior Tribunal Militar, a corte de apelação, é formada por 15 ministros, sendo 10 militares.
Se o caso de Adriano é extremo pela violência com que ele foi tratado pelos militares, não o é na forma e no conteúdo da acusação. Desde que os membros do Exército começaram a atuar em operações de Segurança Pública no Rio de Janeiro, as chamadas GLOs (operações de Garantia da Lei e da Ordem), mais de 140 civis foram denunciados e investigados na Justiça Militar por variados crimes. O mais frequente é desacato (artigo 199 do Código Penal Militar), seguido de desobediência (artigo 301) – o crime que levou Adriano ao tribunal – e resistência (artigo 177).
Ou seja: não apenas civis foram detidos e julgados em tribunais militares, mas a maioria dos crimes dos quais são acusados são crimes de hierarquia, tendo como principal peça acusatória a palavra de soldados.
O defensor Thales Treiger, da Defensoria Pública da União, analisa que a figura do desacato “traz uma desigualdade entre o poder público e o particular” e impede que o poder público se aprimore porque, segundo ele, “qualquer desavença acaba sendo resolvida com a criminalização de quem reclama”.
“Nossa postura é defender as pessoas que são imputadas por desacato pelos mais variados motivos: ‘ah, me chamou de periquito’, ‘estranhou porque pediu a identidade’, começou uma discussão… Som alto já foi motivo de prisão também”, descreve.
Os dados de processos de civis em cortes militares, obtidos pela Agência Pública através de diversos pedidos de lei de Acesso à Informação, demonstram que a maioria dos casos se refere a situações deste tipo.
No total, foram 144 processos em que civis são acusados por crimes militares em operações de segurança pública desde 2011, quando ocorreu a primeira grande operação do tipo, no Complexo do Alemão. Desses, 77 foram condenados.
O artigo 299, que descreve desacato a militares, levou 2014 pessoas aos tribunais militares. 60 foram condenados a penas que vão até 6 meses de prisão. Outros 27 civis foram processados pelo artigo 301, ou seja, desobediência, metade dos quais foi condenada a penas de seis meses a um ano.
Outra acusação frequente foi o artigo 177: resistência, ou, nos termos da lei, “opor-se à execução de ato legal, mediante ameaça ou violência ao executor”. Houve 22 civis acusados formalmente e 13 condenados.
Embora tenham sido condenados à pena de reclusão, menos da metade acabou indo de fato para a prisão, o que ajuda esses procedimentos a permanecerem acontecendo sem alarde. 47 deles receberam o benefício “Sursis”, ou seja, uma suspensão da pena privativa de liberdade, desde que o réu seja primário e a pena seja inferior a 4 anos.
Nesses casos, o condenado tem que cumprir determinadas condições, como se apresentar ao tribunal de tempos em tempos. O que não significa que eles tenham ficado livres: são detidos e condenados pela Justiça Militar, deixando de ser réus primários. Além disso, como todos os criminosos no país, têm seus direitos políticos suspensos – não podem votar – e não podem sair do Brasil durante o período da pena.
Além dos civis que foram de fato levados à Justiça Militar, há centenas que foram detidos por militares durante operações de segurança pública. Um relatório elaborado pelo STM em 2012 mostrou que houve mais de 300 ocorrências registradas na Delegacia de Polícia Judiciária Militar durante a ocupação do Alemão, entre novembro de 2010 e julho de 2012 – mais de dois terços por desacato, desobediência ou resistência.
Em 5 de fevereiro de 2011, na Vila Cruzeiro, na Penha, João Luís foi abordado agressivamente por um grupo de militares. Segundo a denúncia, João teria se comportado de forma bruta e, em um dos movimentos que fez, acertou o rosto de um dos militares. Exaltado, o militar deu um soco em João, derrubando o civil sobre um carro e quebrando seu dente. Os dois tiveram que ser separados, mas João conseguiu fugir por alguns metros; o sargento disparou com arma não letal, acertando suas costas. Ambos foram processados, mas apenas João Luís foi condenado.
Entre 2014 e 2015, durante a ocupação da Maré, o Comando Militar do Leste chegou a anunciar que houve 114 prisões em flagrante por desacato, desobediência e resistência, dos quais apenas 39 viraram procedimentos na Justiça Militar.
No dia 28 de agosto de 2014, Diogo Duarte de Lima foi abordado no Complexo por militares de maneira “bruta”, segundo testemunhas. Os soldados afirmam terem sido xingados pelo acusado de “zé ruela” e “cuzão”. Em seguida, os soldados tentaram revistá-lo; segundo testemunhas, ele não quis ser revistado porque já havia apresentado documentos e levantado a camisa. Já os soldados alegam que o acusado resistiu duramente à revista, se debatendo e agindo de forma agressiva. Diogo criticou a abordagem dos militares abertamente, relatando, inclusive, que um deles teria o ameaçado com chutes se não colocasse a mão na parede.
Diogo chegou a ser absolvido na primeira instância, mas o Ministério Público Militar entrou com uma ação para mudar a sentença — no fim, foi condenado a sete meses de detenção, com benefício de sursis de dois anos.
“Me parece que esses três tipos penais que são os mais recorrentes guardam uma mesma lógica: o agir do agente público, no caso os militares, não pode de forma alguma ser contestado, sob pena de ser qualificado como um crime”, explica Guilherme Pontes, da organização Justiça Global.
Para ele, o crime de desacato “viola o princípio fundamental de um sistema democrático, que é sujeitar o governo ao controle popular”.
Desde 1994, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos decretou que o crime de desacato é incompatível com o Artigo 13 da Convenção, explica ele. “Isso porque ele se presta a abusos como meio de silenciar protestos contra ideias impopulares”.
Outro ponto bastante questionado por especialistas é o próprio fato de civis serem julgados em tribunais militares, mais de 30 anos depois do fim da ditadura militar. “O entendimento já consolidado no Sistema interamericano é que os Tribunais Militares não devem julgar civis. Em estados democráticos não pode haver tribunais de exceção. E se alguém é processado na Justiça Militar, a primeira instância civil na qual poderá recorrer é o STF”, diz Guilherme.
Embora as operações de GLO sejam cada vez mais comuns, são poucos os militares processados criminalmente por atos contra civis nessas operações, ainda que pesem sobre as Forças Armadas acusações de invasões de casas, ameaças, uma chacina e até tortura praticada dentro de um quartel, como choques elétricos, prática que remonta à época da ditadura.
Segundo o levantamento realizado pela Agência Pública, no mesmo período analisado houve 29 processos criminais envolvendo militares em GLOs. Desses, 13 foram condenados, e 10 receberam o recurso “Sursis”.
Por outro lado, a série de reportagens Efeito Colateral levantou pelo menos 34 homicídios dos quais militares foram acusados em operações GLO. E não houve nenhuma condenação.
Dentre os casos denunciados na série, diversos são arquivados ainda durante a investigação, feita pelos próprios militares, que na maioria das vezes ouvem como testemunhas apenas soldados. Raramente a família da vítima é ouvida. Em todos os casos apurados, os familiares indicam falta ou demora de socorro; há ainda relatos de ameaças contra as vítimas ou familiares que tentam pedir explicações.
Por sua vez, os soldados costumam dizer que houve atentado à sua vida e que agiram em legítima defesa – e o caso de Adriano é apenas um deles.
Matheus Martins da Silva, de 17 anos, foi morto em fevereiro de 2017 quando voltava da casa da tia, em Cariacica, no Espírito Santo. Os soldados que acertaram sua cabeça com uma bala 7.62 de fuzil disseram que ele estava armado e eles agiram em legítima defesa. Não conseguiram provar. “Eles falaram que meu filho era vagabundo, criminoso. Foi uma covardia.”, diz a sua mãe. A juíza da Justiça Militar determinou na sua sentença que apenas a sensação que estavam sendo atacados era o suficiente. Foi um “erro escusável”, disse ela. E inocentou os soldados.
Em 2018, no mesmo bairro em que morreu o músico Evaldo Rosa – cujo carro recebeu mais de 60 tiros em abril deste ano – outro jovem, Diego Ferreira, de 25 anos, foi morto também com um tiro de fuzil, quando voltava de um posto onde fora comprar gasolina. Diego estava de moto na rua de trás da sua casa, onde morava com os avós. Os militares alegaram que ele avançou tentou atropelá-los. A investigação, feita pelo Exército, chegou à conclusão que os militares agiram em legítima defesa. O caso foi arquivado pela Justiça Militar.
Mesmo assim, desde o final de 2017, os casos de homicídios cometidos por militares são julgados pela Justiça Militar, ao contrário do que acontecia antes – esses casos tinham que ir para o Tribunal do Júri na Justiça federal.
“O que se considera crime militar vem sendo alargado”, explica Guilherme Pontes. “A lei 3491, de 2017, inclusive foi apelidada de ‘licença para matar’ pela sociedade civil brasileira”. Para ele, considerar homicídios cometidos por militares como crimes militares “atenta contra os princípios basilares do estado democrático de direito”.
O defensor público Thales Treiger concorda. Para ele, homicídios de civis por militares, em tempos de paz, “não têm nada a ver com atividades militares propriamente ditas”.
“Isso não deveria ser julgado na justiça militar. Tem questionamentos no Supremo sobre essa lei, pois é muito perigoso esse precedente. A impunidade desses casos está ligada não só por essa ligação umbilical da Justiça militar e os militares em si”, diz.
O advogado João Tancredo, que defende na esfera civil vítimas do Exército, como Vitor Santiago – que estava no carro com Adriano – e os familiares do músico Evaldo Rosa, vai além. Ele acredita que o “corporativismo” leva a decisões favoráveis aos militares. “O julgamento de um caso pelos integrantes da própria força que tenham participado da corporação acaba de certa forma gerando um corporativismo ou uma compreensão deturpada daquele comportamento. O militar vai enxergar em determinados casos uma conduta normal para aquela atividade, quando um outro órgão civil julgar vai ver que não, que houve excessos, erros etc. Em vez dos peritos da polícia civil, quem faz a perícia de fato são os próprios militares nomeados pelo encarregado do inquérito. A chance de isso dar erro, de dar decisões ou informações com esse viés corporativo é enorme”, explica.
Da Pública