Mais Médicos: governo abandona bolsões de pobreza nas metrópoles

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Médica há mais de 20 anos e com experiência em missões humanitárias internacionais, cubana Mileydis Caridad González Gutierrez desembarcou no Brasil para atuar em uma Unidade Básica de Saúde no Jardim Valflor, bairro pobre da paulista Embu-Guaçu. Durante cinco anos, cuidou e acompanhou a saúde de mais de mil famílias da região.

Ela e seus pacientes viviam satisfeitos até o dia em que a doutora Gutierrez foi obrigada a deixar o posto em consequência da decisão de Jair Bolsonaro de romper o acordo com o governo de Cuba. Casada com um brasileiro, a médica decidiu ficar na cidade. Desde então, embora faltem profissionais na região, nunca conseguiu voltar a exercer o ofício. Segundo amigos, a cubana, desempregada, esporadicamente exerce a função de cuidadora de idosos. Outras quatro doutoras da Ilha de Fidel que optaram por permanecer na cidade após o fim do acordo enfrentam a mesma sina.

Em novembro, logo após se despedir dos colegas e pacientes da unidade, Mileydis Gutierrez concedeu uma entrevista a CartaCapital, em um esforço pessoal para desmentir várias das informações falsas e preconceituosas difundidas pelo governo. Desta vez, acabrunhada, preferiu não falar.

Desde a despedida da doutora cubana, a unidade do Jardim Valflor está sem médicos. Um jovem recém-formado passou por lá em janeiro, mas abriu mão da vaga em menos de 30 dias para cursar a residência em outra localidade. Os moradores do bairro dependem da boa vontade de dois médicos que se revezam para atender esta e outras unidades desfalcadas. E as enfermeiras fazem o que podem para suprir a carência. “Tem muita troca de receita, e nós não podemos fazer nada. Os pacientes não entendem que não têm mais médicos, a doutora era uma referência”, lamenta a auxiliar de enfermagem Ana Paula de Araújo Santos.

Embu-Guaçu perdeu, de uma só vez, todos os 16 cubanos que faziam a assistência básica à população. Entre idas e vindas, foram repostas oito vagas, metade da demanda. “A maioria que chega é de recém-formados, tivemos aqui um que havia pegado o diploma em dezembro”, afirma Claudia Chagas de Souza, que presta apoio técnico à secretaria. “Graças a Deus, não tivemos nenhuma morte, mas o sentimento de culpa será enorme se acontecer.”

O caso do município da Região Metropolitana de São Paulo reflete a realidade de muitas outras cidades que amargam a falta de médicos para ocupar as vagas deixadas pelos cubanos. Passados mais de seis meses desde o rompimento, perto de 42% das cidades brasileiras ainda estão sem profissionais de saúde. O governo tem falhado em repor o vazio assistencial deixado pelo programa.

Embu-Guaçu tem 68,2 mil habitantes e está distante apenas 47 quilômetros da capital paulista. Vive basicamente do comércio e dos repasses do governo federal. De acordo com os critérios estabelecidos pelo Ministério da Saúde para classificar os municípios conforme o grau de vulnerabilidade, a cidade tem perfil 3: área com maior porcentual de pobreza em uma Região Metropolitana.

A pasta estabeleceu uma escala que define o grau de vulnerabilidade de cada município. De 1 a 8. As menos vulneráveis, conforme a escala, são as cidades com alto índice populacional e menores porcentuais de população em extrema pobreza. As mais desamparadas são as comunidades indígenas.

Em dezembro, o Ministério da Saúde anunciou o preenchimento das 8.517 vagas deixadas pelos cubanos. Mas o vácuo voltou a crescer conforme os selecionados, brasileiros em sua totalidade, desistiam de atuar nos locais mais distantes e carentes. O vaivém de médicos em nada combina com o atendimento de saúde da família, alicerçado na proximidade entre o doutor e o paciente. O último levantamento realizado pela pasta, em maio, mostra que 1.325 profissionais se desligaram do programa.

O edital mais recente, encerrado há duas semanas, busca repor 2.212 vagas deixadas por médicos que se inscreveram para o Mais Médicos, mas, por diversas razões, desistiram de continuar no programa. O processo, entretanto, tem deixado de contemplar as cidades situadas entre os graus 1 e 3, como capitais, municípios em Regiões Metropolitanas e aqueles com mais de 50 mil habitantes.

Esses municípios, argumenta o Ministério da Saúde, têm condições de contratar por conta própria e não precisariam do apoio federal. Será? “Mesmo que houvesse médicos disponíveis, a cidade não teria condições de contratar. Por lei, deveríamos gastar 15% do orçamento com saúde, mas não conseguimos sair dos 30%. Além disso, estamos perdendo muita receita”, reclama Maria Dalva Amim dos Santos, secretária de Saúde de Embu-Guaçu.

Atualmente, o custo com o Mais Médicos é dividido entre o Ministério da Saúde e o município. Pelas regras do programa, cada médico recebe uma bolsa de 11,8 mil reais, além de uma ajuda de custos para moradia e transporte. O valor ultrapassa os limites que algumas prefeituras conseguem pagar, devido ao teto dos servidores limitado ao salário dos prefeitos.

 

Muitas capitais e cidades de médio porte, apesar de ostentarem indicadores gerais razoáveis, são repletas de bolsões de pobreza. Em São Paulo, estado mais rico do País, oito em cada dez municípios ficariam de fora das novas regras. Há cidades que, de lá para cá, estão sem médico. É o caso de Rio Grande da Serra, há cerca de 50 quilômetros da capital paulista. Sem os oito estrangeiros enviados pelo programa, a assistência básica de saúde na cidade acabou.

Outros estados menos aquinhoados enfrentam situação semelhante. Em Salvador, que também ficou de fora do último edital, há um gargalo de mais de 50 médicos. Nas regiões Sul e Centro-Oeste, o problema não é diferente. Temendo um apagão geral, o Ministério Público Federal de Santa Catarina passou a exigir que os próximos editais do Mais Médicos incluam as cidades de perfis entre 1 e 3. Requer ainda que o governo apresente à Justiça um relatório quadrimestral, no qual indique as vagas ativas, ocupadas e desocupadas, além de lançar novos editais e a contratação de médicos sempre que houver demanda comprovada. O ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, criador do programa e agora deputado federal, também cobrou explicações sobre os cortes.

A intenção do governo federal é excluir esses municípios do Mais Médicos. Os bolsistas que atuam nessas regiões, vencidos os três anos do benefício, não terão mais o contrato renovado. Trata-se de um claro movimento para cumprir uma promessa de campanha: acabar com o programa criado pelo PT. Bolsonaro pretende substituir a iniciativa por outra semelhante, mas com a sua assinatura. Até o momento, não há, porém, nome ou detalhes de como o projeto sairá do papel.

Em nota, o ministério reforça que, para atender os municípios sem médicos, estendeu para seis meses o prazo de pagamento da verba de custeio repassada às unidades que perderam profissionais do Mais Médicos. A regra anterior cortava o repasse para o posto se ele ficasse sem um profissional por mais de 60 dias. “Os gestores dessas localidades têm autonomia para utilizar esses recursos para contratar seus próprios médicos”, informa o texto.

Primeiro contato de muitas cidades com a medicina profissional, o Mais Médicos era a porta de entrada para o sistema de saúde. Os cubanos e bolsistas de outros países atendiam principalmente recém-nascidos, gestantes, hipertensos e diabéticos, e priorizavam a prevenção de doenças. A falta de doutores dedicados à atenção básica sobrecarrega o atulhado serviço de pronto-atendimento dos centros urbanos. Também infla o número de internações, pois o paciente sem acompanhamento prévio só chega ao hospital quando seu quadro clínico está grave.

O enxugamento progressivo do programa, sem uma alternativa oficial, preocupa os prefeitos. Por meio do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde, as cidades tentam negociar uma solução intermediária. Em vez de classificar os municípios, sugere-se a criação de um sistema georreferenciado, voltado para a reposição de vagas em áreas vulneráveis, como é o caso das periferias e dos distritos indígenas situados em Regiões Metropolitanas.

Com a economia em queda livre, as limitações do teto de gastos e um governo que se mostra pouco preocupado em incluir os mais pobres, o sonho de cobertura universal da saúde, estabelecido pela Constituição de 1988 e parcialmente alcançado pelos governos das décadas seguintes, corre o risco de ruir completamente. Em consequência da descontinuidade do programa, o País, estima-se, deve registrar um aumento de 100 mil mortes prematuras evitáveis até 2030, principalmente por causa de doenças infecciosas e deficiências nutricionais em recém-nascidos e adultos com até 70 anos.

É o que mostra um estudo do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, em parceria com cientistas da Universidade Stanford, dos Estados Unidos, e do Imperial College de Londres. A pesquisa analisou dados de 5.507 municípios brasileiros em uma projeção de 2017 até 2030, ano definido pela Assembleia-Geral das Nações Unidas para o cumprimento dos “Objetivos Globais para o Desenvolvimento Sustentável” em 193 países. Do ponto de vista do Brasil, que optou por um acelerado retorno à Idade Média, 2030 fica cada vez mais distante.

Da Carta Capital