Sem os “vagabundos eficazes” da escola pública, o Brasil seria nada
Talvez você não se lembre, mas São Paulo já foi bem pior. Na metade dos anos 1990, a cidade se desmanchava em caos. Os assassinatos cresciam exponencialmente, a periferia era um abismo que terminava em chacina e cólera (a doença) e, bem, era possível surfar em trens da CPTM.
Passei os últimos anos da infância e os primeiros da adolescência nesse universo. Na minha escola, aprendíamos a fazer canivete com caneta e apontador e a se defender em caso de soco na cara. Visto de longe, aquele universo era brutal. E era mesmo —mas não era só isso. E o “só isso” é muito importante nesta história.
A escola pública tem muita potência. Se ela fosse apenas o reino da escassez e da violência, o Brasil simplesmente não existiria. A ampla maioria das pessoas estuda (ou estudou) em instituições públicas no ensino básico. Há uma força gigante dentro daquelas salas de aula. Porém, hoje, muitas dessas forças estão bloqueadas. Nosso papel é destravar essa energia.
Ganhei essa chave enquanto lia “Os vagabundos eficazes”, do educador francês Fernand Deligny. São contextos bastante diferentes, claro. Deligny escreve da França de meados do século 20. Eu tenho memórias do final do século passado formadas em Caieiras.
Deligny analisa sua experiência dentro de uma instituição para adolescentes com problemas familiares ou policiais. Eu nunca passei por uma organização assim, por mais difícil que tenham sido as salas de aula daqueles anos.
Apesar das diferenças, de tempo e de país, há muitas semelhanças entre as experiências francesa e caieirense. O livro é pequeno em tamanho e enorme em ideias. A mais valiosa entre elas, a meu ver, é sobre a forma como olhamos para os nossos estudantes. Quando você coloca as lentes da escassez, vai ver apenas o que falta. Falar da falta é relevante, ainda mais nesse momento de corte de verbas e de avanços tímidos em aprendizagem. Porém é insuficiente. Educação é muito mais do que isso.
Há milhares de alunos criativos, de professores comprometidos, de estudantes sedentos de aprender (mesmo que muitos não saibam disso). Precisamos melhorar a educação não apenas para suprir lacunas, mas para fazer cada uma dessas pessoas, estudantes e professoras, voar.
Queremos alfabetizar todos os nossos estudantes porque um deles, pode ter certeza, será um dos maiores escritores do planeta. Precisamos ensinar matemática para as meninas porque uma delas vai ganhar o Nobel pela sua contribuição aos estudos de clima.
Educação não é assistência social. Educação não é um programa de redução de danos. É sobre criar seus próprios caminhos —e sobre criar caminhos junto com outras pessoas. Queremos ensinar ciências para que alguém seja um excelente professor de biologia. Queremos ensinar artes porque alguém vai encantar crianças e adolescentes nos nossos museus.
Deligny fala dos “vagabundos eficazes” porque, muitas vezes, a forma de cultivar essa potência vai contra o senso comum. Nos acostumamos a pensar educação como uma fábrica na qual o aluno entra, recebe conteúdo, é formatado e sai pronto para a vida em sociedade. Bem, isso não é verdade. Há muitas escolas dentro de uma instituição e muitas formas diferentes de cativar alunos e fortalecer professores —e já tem muita ciência aí, que cresceu bastante desde os tempos de Deligny.
Mas, para fazer isso, precisamos reconhecer que a escola não é uma linha de montagem, como vários países já perceberam —inclusive Coreia do Sul, Singapura e Japão, que exercem uma espécie de fascínio disciplinar entre nós.
Hoje, há um certo consenso de que o aluno tem de estar no centro do processo de aprendizagem. Ao professor não basta passar a matéria mas criar estratégias para diferentes tipos de estudantes. É bem mais difícil do que no passado —mas, sendo sincero, o que não é? Por isso que a formação de educadores e o apoio da sociedade a elas e eles é fundamental.
Além disso, os professores precisam ter altas expectativas em relação aos estudantes. Na prática, isso significa mostrar ao aluno que ele é capaz de aprender. Não existe criança burra, apenas criança que aprende em ritmos diferentes.
Um “vagabundo eficaz” tem sensibilidade para perceber isso —e essa “vagabundagem eficaz” é um conhecimento que pode ser compartilhado entre educadores. Vários deles, aliás, sabem bem o que é isso. Muitas vezes, alguém passa por um professor assim e fala “ele não está fazendo nada, só fica de papo com os estudantes”. Mal sabe o maledicente do poder que aquela conversa tem… De novo, Deligny viu na prática o que a ciência sistematizaria anos mais tarde.
Apesar dos inúmeros problemas, eu tive algumas das minhas melhores aulas de “habilidades socioemocionais” durante aqueles anos de escola pública. Esse termo guarda-chuva abraça, grosso modo, as lições que nos ajudam a conviver em sociedade.
Tanto as professoras quanto os meus colegas mais velhos davam aulas bem práticas sobre negociação (nunca compre uma briga que você não pode vencer), frustração, criatividade, resiliência e paciência. Também era uma senhora aula sobre conviver com gente muito diferente de você, experiência que só a boa escola pública pode oferecer. E, claro, também aprendi matemática e português.
Se olharmos para a escola como o reino da potência, vamos mudar a lente pela qual analisamos os nossos desafios educacionais. Talvez essa seja uma das tarefas mais urgentes dessa época.
Da FSP