Tribunal Militar condena ex-cabo por torturar recrutas no acampamento
O Superior Tribunal Militar manteve a condenação de um ex-cabo do Exército acusado de maus tratos. O julgamento aconteceu na sessão realizada na última quinta-feira, 13, quando a Corte entendeu que o réu cometeu delito previsto no artigo 213 do Código Penal Militar. Por causa da conduta, ele foi condenado a dois meses de detenção, com regime prisional aberto.
O caso aconteceu em um exercício de acampamento realizado pelo 2.º Batalhão de Engenharia de Construção (2.º BEC), localizado em Teresina.
De acordo com a denúncia do Ministério Público Militar, o cabo, que estava encarregado de guiar os soldados por uma das pistas de instrução, utilizou uma lanterna para dar choques em 18 recrutas, ‘colocando em risco a saúde dos militares’.
No relatório do recurso de apelação perante o Superior Tribunal Militar, o ministro general de Exército Lúcio Mário de Barros Góes destacou que ‘embora, em suas declarações, a maioria dos recrutas tenha minimizado a situação à qual foram expostos, em alguns casos a percepção da descarga foi mais intensa, visto que os instruendos estavam molhados, havendo relatos de tremores e dores de média intensidade por ocasião dos choques recebidos, o que revela a potencialidade lesiva do equipamento e a efetiva exposição da saúde a perigo’.
O documento destaca trechos dos depoimentos das vítimas.
Lucas Sousa Castro relatou: ‘(…); que um dos choques pegou no fuzil e nesse momento o depoente sentiu o corpo tremer; que não sentiu dor por ocasião dos choques;(…)’.
Jeferson Villineuve Rosendo de Brito contou: ‘(…) que no momento dos choques a pele ficou vermelha, mas logo depois sumiu; que sentiu algumas dores, que se irradiaram pelo corpo, pelo fato de estar molhado; que as dores foram medianas, nem fortes nem fracas. (…)’.
Gabriel da Silva Feitosa disse ‘(…) que os choques propagaram alguma dor porque o depoente estava com o corpo molhado; que sentiu maior intensidade de dor quando estava segurando o fuzil na horizontal, ao receber choque na mão direita; (…)’.
João Pedro do Nascimento Amorim relatou: ‘(…) que sentiu dores provenientes dos choques, mas avalia como dor de média intensidade; (…)’.
Italo Estefânio Pereira Chaves contou: ‘(…) sentiu que a descarga recebida estaria colocando sua vida em risco, pois estava molhado no momento; que sentiu os efeitos da descarga se propagar pelo corpo, pois na hora do choque se tremeu todo (…)’.
O réu foi condenado em primeira instância em agosto de 2017, motivo pelo qual a Defensoria Pública da União interpôs recurso de apelação junto ao Superior Tribunal Militar.
Na Corte Superior, a apelação foi julgada pelo ministro Lúcio Mário de Barros Góes, que decidiu manter a sentença de primeira instância por entender que estava comprovada a autoria do crime.
O réu foi condenado a dois meses de detenção com regime prisional inicialmente aberto.
“Não resta dúvida de que a conduta do acusado ‘expôs a perigo’ a saúde dos instruendos que estavam sob a sua responsabilidade, na medida em que, quando submetido a choques elétricos, o organismo humano reage de forma diversa, de acordo com o grau de resistência de cada pessoa, propensão a determinadas doenças, etc”, assinalou o ministro.
Barros Góes alerta que ‘deve-se lembrar, ainda, que as vítimas estavam molhadas, o que sabidamente potencializa o perigo na exposição a choques elétricos’.
“Os autos revelam que o acusado consumou o delito no momento em que, sendo o responsável pela pista de progressão noturna, aplicou choques com uma lanterna conhecida como ‘taser’ em pelo menos 18 instruendos que estavam sob sua responsabilidade. Oportuno salientar que, em Juízo, o réu declarou que todos os militares estavam ‘(…) debilitados, cansados e molhados (…)’, circunstância que, por si só, potencializa eventual consequência da exposição, ou melhor, do choque propriamente dito”, acentua o ministro do Superior Tribunal Militar.
Barros Góes pondera que, de acordo com a ‘doutrina e jurisprudência, para a configuração do delito de maus-tratos, ‘basta que haja a exposição da vida ou da saúde do instruendo a risco, situação que notadamente ocorreu’.
O ministro Barros Góes ressaltou. “Considerando, portanto, tratar-se de crime de perigo que não exige a efetiva ocorrência de lesão, a aplicação de descarga elétrica nos Ofendidos consubstancia o elemento subjetivo do tipo penal descrito no artigo 213 do Código Penal Militar, uma vez que os autos revelam a finalidade do acusado, qual seja, a ‘(…) vontade consciente de maltratar o sujeito passivo, de modo a expor-lhe a perigo a vida ou a saúde’..”
Ainda segundo o magistrado. “No que atine à culpabilidade, é altamente reprovável a conduta de quem, deliberadamente, em lugar sujeito à Administração Militar, expõe a perigo a saúde de militares, submetendo-os à aplicação de choques durante atividades de instrução de acampamento, quanto mais, levando-se em consideração que, no dia dos fatos, os ofendidos encontravam-se com o corpo molhado, circunstância que poderia potencializar o perigo ao qual foram expostos.”
O ministro do STM assinalou. “O réu era imputável com potencial consciência da ilicitude do fato, dele sendo exigida conduta diversa.”
O Laudo de Exame Pericial não mediu a corrente e a tensão produzidas pela lanterna. “Contudo, a perícia concluiu que o referido objeto se encontrava em perfeitas condições de uso, sendo apto a produzir descarga elétrica, que gera um arco-voltaico entre as placas metálicas presentes na sua parte anterior, mediante o acionamento do seu botão lateral, de maneira que não resta qualquer dúvida acerca de sua potencialidade lesiva”, sustenta o ministro.
“Da mesma forma, não obstante os laudos dos exames de corpo de delito realizados nas vítimas (procedidos, de maneira indireta, cinco meses após a ocorrência dos fatos) terem atestado que não houve ofensa à integridade corporal ou à saúde dos Ofendidos, a efetiva lesão à integridade ou à saúde não é exigida para a configuração do delito de maus-tratos, eis que, por se tratar de delito de perigo concreto, para a sua consumação exige-se tão somente a ‘exposição a perigo de que decorra a probabilidade de dano à saúde’”, seguiu Barros Góes.
Para ele, ‘caso tivesse ocorrido efetiva lesão à integridade corporal ou à saúde dos instruendos, haveria o exaurimento do delito, a incidência de maus-tratos na sua forma qualificada, ou até mesmo de outro tipo penal’.
Ao negar provimento ao apelo da defesa de Francisco Kermison Soares da Silva, o ministro anotou. “Restaram comprovadas a materialidade e autoria delitivas. O fato é típico e antijurídico, o Apelante agiu dolosamente e não há causas que excluam a culpabilidade, impondo-se a manutenção do Decreto Condenatório.”
“Diante do exposto, nego provimento ao Apelo defensivo, mantendo na íntegra a sentença hostilizada por seus próprios e jurídicos fundamentos.”
O ministro chama a atenção para o depoimento do major do Exército Sérvio Alcântara Neves, oficial de operações à época dos fatos, que afirmou, em Juízo. ‘(…) orientou os Oficiais, Sargentos, Cabos e Soldados, por várias vezes, antes e durante o acampamento, no sentido de que era terminantemente proibido o contato físico com os instruendos no acampamento (…)’.
“Inobstante a expressa proibição de manter contato físico com os instruendos, orientação difundida e reiterada pelo oficial de operações do acampamento, desde a alvorada o Acusado já demonstrava a sua intenção de infligir maus-tratos aos subordinados”, aponta o ministro.
Em seu interrogatório à Justiça Militar, o ex-cabo do Exército Francisco Kermison Soares da Silva declarou que ‘a aplicação de choques nos instruendos não estava prevista nas normas relativas ao acampamento’.
Ao ser questionado sobre como reparou que a lanterna produzia algum tipo de choque ou de eletricidade, o ex-cabo descreveu que o ‘choque produzido’ (arco voltaico) era de cor azul ou cinza e que fazia um barulho parecido com o de um besouro ou de uma cigarra.
Indagado sobre se havia aplicado os choques em si mesmo, o réu declarou que não, mas, ainda assim, sabia que ‘(…) aquilo ali não era uma coisa boa’.
Do Estadão