Uns têm o direito de matar, outros parecem ter o dever de morrer no país de Bolsonaro
Em entrevista publicada no site da ÉPOCA na sexta 7, o general Hamilton Mourão celebrou a aparente perda de força, no governo federal, dos seguidores de Olavo de Carvalho. “Carlos sumiu”, afirmou o vice-presidente, que naquele momento era o presidente em exercício, pois Jair Bolsonaro estava na Argentina. Não tardou para Carlos Bolsonaro reaparecer. Escreveu no Twitter: “Saudades do presidente que é pró-armamento da população e contra o aborto. Volte logo, presidente de verdade!”.
A primeira frase do filho 02 é uma boa amostra do pensamento conservador – não só contemporâneo, não só brasileiro, mas que forma o ideário do governo Bolsonaro. Seus fãs podem não querer ou conseguir enxergar, mas a frase é explicitamente contraditória.
Se o presidente é pró-armamento da população, significa que ele considera legítimo que pessoas utilizem armas de fogo para matar outras pessoas. Os “cidadãos de bem”, como classifica, têm o direito de reagir àqueles que veem como ameaça – não precisa ser à vida, basta ser à propriedade (fazenda, carro).
Quem é contra o direito ao aborto se diz pró-vida. Para estes, os fetos, ainda que com menos do que três meses de gestação, devem ser tratados como seres humanos e, logo, não podem ser “assassinados”. Quando nascerem e cresceram, poderão. Caetano Veloso escreveu na letra de “Haiti”: “E [se] o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto e nenhum no marginal”.
Ao defender a redução das multas no trânsito e o fim delas para quem não transportar crianças em cadeirinhas, Bolsonaro argumentou que as pessoas são capazes de saber o que é seguro ou não. A ideia geral do governo, como escreveu Carlos na quinta 6, é “tirar o Estado do cangote da população”. Tira do cangote, mas não do útero. Mulheres são condenadas, simbólica e literalmente, se decidem não prosseguir com a gravidez que é delas, não do Estado nem dos vizinhos.
O presidente sancionou lei que endurece ainda mais a legislação brasileira sobre drogas. Se as pessoas precisam ser responsáveis pelo que fazem, o Estado não deveria combater, por exemplo, quem cultiva maconha para uso próprio. Mas para Osmar Terra, que apresentou o projeto de lei quando era deputado e hoje é ministro da Cidadania, há uma epidemia de drogas no Brasil, e o consumo excessivo está por trás da violência que atemoriza as cidades. Surpreende que maconheiros do Leblon ou dos Jardins não terminem abatidos por “cidadãos de bem”. Talvez seja porque todos são brancos.
Determinar quem pode matar e quem deve morrer está no cerne dos pensamentos e governos autoritários. No caso do Brasil, se um indígena matar um grileiro, por entender que a terra em que seu povo vive há séculos está sendo invadida, ele será considerado um bárbaro. Se um ruralista matar um indígena ou um sem-terra que esteja dentro de sua propriedade, terá atuado em legítima defesa – mesmo que essa propriedade tenha avançado ilegalmente contra áreas indígenas e de pequenos agricultores.
Bolsonaro leva a Brasília um modo de atuação disseminado por Estados e municípios: a terceirização do direito de matar, quebrando o monopólio que, numa democracia, pertence ao poder público. A facilitação do acesso às armas e o estímulo ao uso delas contra “bandidos”, “invasores”, “antipatriotas” desobriga o governo de sujar as próprias mãos.
No ensaio “Necropolítica”, em que apresenta esse conceito, o pensador camaronês Achille Mbembe, professor na África do Sul e nos EUA, escreve sobre o continente africano algo que serve ao Brasil de hoje: “Milícias urbanas, exércitos privados, exércitos de senhores regionais, segurança privada e exércitos de Estado proclamam, todos, o direito de exercer violência ou matar” (tradução de Renata Santini para a editora N-1).
Ao menos no Rio de Janeiro, sabemos que muitos policiais matam quando estão sem farda ou distintivo: integrando milícias, prestando serviços para bicheiros e comerciantes, fazendo bicos como seguranças. Usam o conhecimento adquirido no serviço público para realizar homicídios que não caem na conta dos governos.
Wilson Witzel, versão engalanada de Bolsonaro, comemora ações policiais que resultam em mortes e defende tiros dados de helicópteros sobre favelas superpopulosas. Quando o músico negro Evaldo Rosa morreu dirigindo um carro que militares do Exército atingiram com 83 tiros, o governador disse que não poderia fazer “juízo de valor”.
Mbembe também escreve: “A vida cotidiana é militarizada. É outorgada liberdade aos comandantes militares locais para usar seus próprios critérios sobre quando e em quem atirar. O deslocamento entre células territoriais requer autorizações formais. Instituições civis locais são sistematicamente destruídas. A população sitiada é privada de suas fontes de renda. Às execuções a céu aberto somam-se as matanças invisíveis”. Aplica-se bem às favelas cariocas.
Na semana que passou, foi divulgado o Atlas da Violência 2019, com os dados de 2017, os últimos disponíveis. O Brasil permanece campeão mundial de homicídios: 65.502. Destes, 47.510 foram cometidos com armas de fogo. Para cada quatro vítimas, três eram negras. Uns têm o direito de matar, outros parecem ter o dever de morrer.
Da Época