“A Lava Jato ouviu em tempo real nossas conversas”, diz Zanin
O ex-presidente Lula está mais entusiasmado após o vazamento das conversas entre Sergio Moro e procuradores da Operação Lava Jato.
Já Cristiano Zanin Martins, 43, seu advogado, sabe que ainda tem um caso complexo nas mãos e reconhece que não tem sido fácil dormir.
“É um caso que você tem o tempo todo fatos ocorrendo, notícias. Não é um caso que permite você desligar e ter um sono tranquilo”, afirmou ele durante a quase uma hora de entrevista concedida ao EL PAÍS na tarde da última quarta-feira em seu escritório em São Paulo. Lula está preso desde abril do ano passado na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, acusado de corrupção e lavagem de dinheiro no caso do triplex. E responde por mais dois processos âmbito da Operação Lava Jato, um, do caso do sítio em Atibaia (SP), em que ele já foi condenado, e outro ligado à compra de um apartamento em São Bernardo (SP) e de um terreno atribuído ao Instituto Lula.
Seu advogado, de voz serena, de terno e gravata perfeitamente alinhados, assim como seus cabelos, afirma que as conversas vazadas apenas reforçam o que a defesa já vinha sustentando desde 2016: que o ex-juiz Sergio Moro foi parcial ao longo do processo que levou Lula para a prisão, e que por isso, tudo deve ser anulado e reiniciado do zero por um juiz imparcial.
Pergunta. A estratégia da defesa vai mudar após as mensagens vazadas pelo The Intercept?
Resposta. Esse material do The Intercept, que também está sendo divulgado por outros veículos, reforça uma situação que foi por nós colocada desde o início dos processos do ex-presidente Lula, que é a suspeição do então juiz Sergio Moro e também dos procuradores da Lava Jato. Em 2016, nós apresentamos, tanto a suspeição de Moro, quanto dos procuradores. E esses incidentes foram sendo processados ao longo do tempo e agora chegou ao Supremo Tribunal Federal. Chegou, na verdade, em dezembro, quando começou a ser julgado, e o julgamento foi retomado recentemente, e por uma coincidência foi divulgado esse material.
P. Quais elementos foram usados para comprovar a suspeição que vocês apresentaram?
R. São vários fatos que apontam claramente para a suspeição, de acordo com o que diz a lei brasileira e os tratados internacionais que o Brasil se obrigou a cumprir. Primeiro, as diversas medidas tomadas em relação ao ex-presidente Lula antes da fase processual que indicavam uma predisposição do ex-juiz Moro para condenar o ex-presidente. Houve a condução coercitiva, incompatível com a Constituição como reconheceu o próprio Supremo, buscas e apreensões diversas na casa do ex-presidente, dos seus filhos e colaboradores, interceptações telefônicas em larga escala, inclusive com a divulgação de parte das conversas interceptadas, que foi aquela entre Lula e Dilma, coletada após o exaurimento da autorização. Houve também interceptações no nosso escritório para acompanhar a estratégia de defesa. Ou seja, houve o acompanhamento em tempo real de conversas entre advogados que estavam tratando da defesa do ex-presidente Lula. Não é tão somente o fato de ter ocorrido uma interceptação, mas sim uma interceptação que foi acompanhada em tempo real, por 25 dias, quando policiais, procuradores e o juiz Moro sabiam de tudo o que era conversado pelos advogados e possivelmente tomavam medidas para inviabilizar a estratégia da defesa. Teve também a participação de Moro em inúmeros eventos claramente de natureza política e sempre marcados por ser de oposição política ao ex-presidente Lula. Ainda a questão bastante relevante que foi a interferência direta de Moro durante a eleição, sobretudo com a divulgação de uma parte da delação de Palocci. Outro argumento que integra o nosso habeas corpus é o fato dele ter deixado o cargo de juiz que conduzia os processos contra o ex-presidente Lula, que inviabilizou a sua candidatura, para assumir um dos principais cargos no governo que se elegeu a partir do momento em que Lula foi impedido de ser candidato. Esse quadro, totalmente documentado e comprovado, é mais do que suficiente para configurar a suspeição do ex-juiz Moro e consequentemente para que seja anulado todo o processo.
R. O processo inteiro?
R. Todo o processo. É o que diz a lei: uma vez reconhecida a suspeição, todos os atos são anulados e o processo deve ser reiniciado na presidência de um juiz imparcial independente. Esse é um direito que vale para qualquer cidadão, mas que para o ex-presidente não valeu.
P. E neste caso todos os processos da Lava Jato envolvendo o ex-presidente Lula voltariam à estaca zero?
R. O nosso pedido é que nesse caso do triplex seja reconhecida a parcialidade e seja anulado todo o processo. Mas como o mesmo juiz Moro também presidiu os outros processos, também praticou atos, autorizou diversas medidas, realizou atos de instrução, que essa nulidade também alcance os outros dois processos [do sítio em Atibaia e do terreno atribuído ao Instituto Lula] – que tramitam na 13ª Vara Federal de Curitiba.
P. Além do grampo no telefone do seu escritório, vocês tiveram algum caso de hackeamento em algum momento?
R. Não. Não tenho nenhum elemento para dizer sobre ocorrência de hackeamento. Existe sim, e é muito grave, terem retirado do nosso escritório conversas com uma aparência de legalidade. Nosso ramal foi interceptado sob o pretexto de que pertenceria a uma empresa de palestras do ex-presidente Lula. Esse foi o pretexto usado para que os procuradores pedissem a interceptação e foi o pretexto usado pelo ex-juiz Moro para autorizar a interceptação. Isso era uma mentira. Durante os 25 dias da interceptação, Moro recebeu da [operadora] Telefônica dois ofícios alertando que os ramais pertenciam a um escritório de advocacia. Ele estava ciente de que era um ramal de um escritório. Quando o ministro Teori Zavascki [então relator da Lava Jato no STF] pediu a Moro que explicasse o episódio, ele disse que não teve tempo para analisar essa situação. No entanto, nós provamos, e isso está no processo que hoje se encontra sob julgamento do Supremo, que não só eles sabiam que era um escritório de advocacia, mas que eles estavam ouvindo em tempo real as nossas conversas. Eles ouviam a conversa e faziam um resumo daquilo que estava sendo discutido, das estratégias, das providências.
P. Como eram esses resumos?
R. Foi feita uma planilha e cada conversa consta numa planilha, mostrando os autores das conversas e o teor delas. É uma violência ao direito de defesa sem precedentes. Monitorar advogados, ouvir em tempo real a conversa dos advogados e possivelmente tentar se antecipar às estratégias defensivas. Isso, por si só, é suficiente, não só no Brasil, mas em qualquer país civilizado para que se reconheça a suspeição do juiz e para que se anule todo o processo. É preciso lembrar também que não foi a primeira vez que o ex-juiz Moro havia monitorado advogados. Ele já tem precedentes e o próprio Supremo chegou a analisar casos em que ele monitorou advogados. Isso mostra, na minha visão, um desprezo absoluto ao direito de defesa e um atropelo permanente das regras, o que não é compatível com a função jurisdicional e tampouco com o estado de Direito.
P. A defesa pretende anexar as conversas vazadas pelo The Intercept ao pedido de habeas corpus de Lula?
R. Quando o The Intercept começou a divulgar o material, a defesa apresentou uma petição ao Supremo registrando as revelações e colocando a nossa visão de que esses fatos são públicos e notórios e reforçam tudo aquilo que está afirmado e comprovado no processo para que seja declarada a suspeição.
P. Então, por ora, em relação às conversas, é isso que a defesa se propôs a fazer?
R. Sim. Um registro qualificado.
P. O senhor chegou a pedir alguma audiência com Sergio Moro em algum momento durante esse processo?
R. Eu participei das 23 audiências do caso do triplex, assim como de quase todas as audiências relativas aos outros dois casos que tramitam na 13ª Vara. A minha atuação ocorreu nessas audiências públicas. Não tive nenhuma conversa fora delas com o ex-juiz Moro.
P. Mas o senhor solicitou alguma?
R. Não solicitei. Não houve nenhum tipo de intervenção com o ex-juiz Moro nem por telefone ou aplicativo ou fora das audiências públicas que estão registradas nos processos. E as audiências, não só eram conturbadas, porque não havia um respeito pelo trabalho da defesa, como também não havia nenhum objetivo de ouvir a defesa, mas sim de prestigiar sempre o lado acusatório. Nunca houve espaço para que a defesa pudesse realizar o seu trabalho, pudesse levar ao juiz elementos para que pudessem ser analisados e fosse possível proferir um julgamento imparcial.
P. Como assim? Foi requerido algo que não foi respondido?
R. Sequer perguntas nós podíamos fazer livremente às testemunhas, como assegura a lei. Nós éramos o tempo todo interrompidos, tratados de uma forma hostil, perguntas chegaram a ser indeferidas por antecipação, o que é algo que não poderia ter ocorrido. Diversas provas que pedimos foram indeferidas. Num processo desta complexidade os pedidos que fizemos de perícia foram negados. Há reconhecimento de supostos desvios e até mesmo de percentuais [de pagamento de propina] que foram estimados sem nenhuma perícia, com base apenas na palavra de alguns delatores, de planilhas feitas durante ou após processos de delação e que foram feitas de memória. Há muitos elementos que permitem concluir que essa condenação sempre esteve preestabelecida.
P. Estabelecida para quê? Para tirar Lula do jogo político definitivamente?
R. Nós dissemos isso em 28 de julho de 2016 num comunicado levado ao comitê de direitos humanos da ONU. Lá nós já dizíamos que havia uma cruzada por parte do juiz Moro e dos procuradores que estavam atuando em conjunto para impor uma condenação indevida ao ex-presidente Lula para retirá-lo da vida política e impedir que ele pudesse participar de futuras eleições. A realidade é que Lula foi condenado sem prova de culpa, que ele foi indevidamente retirado das eleições presidenciais, que essa atuação levou o país a um rumo político diferente, e hoje o juiz Moro participa dessa realidade política. Essa é a situação.
P. O senhor tinha o telefone de Moro?
R. Não.
P. Nunca teve?
R. Não. Não acho que exista irregularidade no fato de um advogado ou de um promotor manter contato com juiz fora das audiências. Há situações que demandam, ou que podem demandar algum contato pontual. Mas o que o The Intercept está mostrando não é isso, não se está a tratar de contatos pontuais mas sim de contatos permanentes que ocorreram fora do processo indicando um controle por parte do juiz em relação às atividades da acusação. O que vimos ali foi um contato permanente ao longo de todo o processo, mostrando que havia uma ascendência do juiz em relação às iniciativas próprias da acusação. Essa é uma situação que, ao meu ver, não é compatível com o sistema acusatório, que é modelo adotado pelo Brasil e pressupõe duas partes atuando perante um juiz equidistante.
P. O senhor acha que as mensagens vazadas podem pressionar de alguma maneira o Supremo para que retome mais rapidamente o julgamento do habeas corpus de Lula? A opinião pública pesa nesse caso?
R. O que eu acho que efetivamente pressiona a necessidade desse julgamento ser concluído o quanto antes é o fato de haver uma pessoa inocente que está presa há mais de 450 dias. Esse é o fato principal. Trata-se de alguém que, não só foi condenado sem prova de culpa e desprezando as provas de inocência, mas que não teve o direito a um julgamento imparcial. Evidente que as conversas que vem sendo reveladas reforçam essa situação porque reforçam a ausência de um juiz imparcial. A questão agora é esperar. Demos todos os elementos para que o Supremo possa realizar um julgamento justo do ex-presidente especialmente no que tange à questão da suspeição. A situação do ex-presidente se encaixa em pelo menos quatro regras de preferência: a idade [Lula tem 73 anos], o fato de estar preso, o fato de ter um julgamento já iniciado e porque pedimos um habeas corpus. São quatro regras que estão dentro da lei e do regimento do Supremo.
P. Por que o senhor acha que havia uma preocupação dos procuradores para que Lula não desse entrevistas durante a eleição do ano passado?
R. Se você contextualizar essas mensagens com os fatos ocorridos naquele mês de setembro, você vai lembrar que naquele mês tínhamos recebido uma liminar do comitê de direitos da ONU que autorizava o ex-presidente a ser candidato porque o comitê não havia identificado um processo justo. Tivemos a confirmação dessa liminar da ONU no dia 10 de setembro, depois ocorreram alguns fatos que podem ter colocado os procuradores numa posição de que talvez não era aquilo que eles buscavam no processo. E claramente eles não queriam que Lula, depois de ter sido impedido mesmo contra uma decisão da ONU, pudesse dar entrevista e manifestasse sua opinião em relação à eleição. [O EL PAÍS teve uma entrevista suspensa no final de setembro pelo Supremo, atendendo liminar do partido Novo].
P. O ex-presidente ficou mais entusiasmado após o vazamento das conversas entre Moro e os procuradores?
R. Ao meu ver sim, porque você tem a verdade nua e crua aparecendo e confirmando aquilo que ele disse ao longo do processo e que nós como advogados também dissemos.
P. A defesa aposta mais na suspeição de Moro ou em provar que Lula é inocente?
R. São duas situações diferentes. É muito importante para nós, neste momento, termos esse reconhecimento da suspeição para que o processo seja reiniciado perante um juiz imparcial. Não só não há prova de culpa, como também temos provas de inocência que poderão ser analisadas por um juiz imparcial e que poderão levar ao reconhecimento da inocência do ex-presidente. Não acreditamos em outro resultado que não seja a inocência do ex-presidente, por uma razão, nós fizemos a prova da inocência.
De El Pais