Bolsonaro nem sabe o que faz a Ancine
“Não posso admitir que, com dinheiro público, se façam filmes como o da Bruna Surfistinha. Não dá.”
Não foi a primeira vez que Jair Bolsonaro disparou uma opinião descabida e desinformada. Mesmo assim, a fala do presidente durante o evento que comemorou os 200 primeiros dias de sua gestão, realizado nesta quinta (18) em Brasília, surpreendeu a plateia e abalou a indústria brasileira do entretenimento.
“Bruna Surfistinha” não chega a ser um filme erótico, muito menos pornográfico. Sim, tem nudez (parcial) e algumas cenas de sexo –mas quem for assisti-lo para se excitar vai acabar brochando. O drama da jovem Raquel (Deborah Secco), que se torna prostituta depois de se sentir rejeitada pela família e pelos colegas de escola, é mais pungente do que qualquer trepada.
Lançado em 2011, o longa de Marcos Baldini é inspirado nas memórias da ex-prostituta Raquel Pacheco. O livro se tornou um best-seller, e seus direitos para a tela foram disputados por várias produtoras.
Uma disputa justificada. “Bruna Surfistinha” levou mais de dois milhões de espectadores aos cinemas – o dobro do número necessário para que um filme nacional seja considerado um grande sucesso. A história depois foi adaptada para uma série de TV, que já está indo para a quarta temporada.
Mas esses dados impressionantes não interessam a Jair Bolsonaro. Duvido até mesmo que ele tenha visto o filme – deve ter sido o primeiro título que lhe veio à cabeça, ajudado pelo recall da marca.
O que o presidente quer, mais uma vez, é acenar a seus eleitores mais conservadores e religiosos. Mas, ao dizer que o dinheiro público não pode financiar obras como “Bruna Surfistinha”, ele demonstra não ter entendido o que é nem para que serve a Ancine.
A Agência Nacional do Cinema foi criada em 2001, no vácuo da extinta Embrafilme. Não é, como Bolsonaro parece crer, uma empresa estatal destinada a produzir filmes que enalteçam os valores pátrios. É uma entidade voltada a fomentar um braço da economia: a indústria cinematográfica brasileira.
Inúmeras atividades econômicas recebem incentivos estatais, na indústria e na agricultura. O objetivo é criar empregos, fortalecer a produção nacional frente à concorrência estrangeira e até aumentar a arrecadação de impostos.
Mas a extrema-direita elegeu a cultura como sua arqui-inimiga (e com razão, diga-se de passagem). Há anos que uma campanha informal nas redes sociais vem pintando os artistas e intelectuais como parasitas, que mamam nas tetas do Estado e só produzem irrelevâncias e obscenidades.
A verdade é bem outra. Produzir cultura não é simples em nenhum país do mundo, mesmo nos mais avançados. É por isto que existem agências fomentadoras de atividades culturais na França, na Itália, na Alemanha e até mesmo nos Estados Unidos, a meca do presidente.
Bolsonaro quer atrelar a Ancine à Casa Civil, o núcleo duro do governo, provavelmente para se intrometer no processo de seleção dos projetos. Quer ele mesmo praticar o “ativismo” de que tanto acusa com quem não comunga.
Muito mais acertada seria a transferência da Ancine e do Fundo Setorial para o ministério da Economia, como defende a classe cinematográfica e como já estava previsto na medida provisória que criou a agência.
Porque o negócio do audiovisual é coisa séria. Milhões de famílias brasileiras dependem dele. Filmes e programas de TV geram renda, trabalho e até o famoso “soft power” –o poder de influenciar corações e mentes, não-bélico, de que desfruta um país culturalmente forte.
Pelo jeito, não vamos chegar lá tão cedo.
Da FSP