Decreto das armas de Bolsonaro reduz pena de 2 mil presos em SP
Mudanças na lei federal do Estatuto do Desarmamento, feitas via decretos pelo presidente Jair Bolsonaro, podem beneficiar cerca de 2,4 mil presos do Estado de São Paulo, com possibilidade de redução da pena e até de sair mais cedo da cadeia.
O número tem como base levantamento do Instituto Sou da Paz, feito a partir de dados da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP).
Em maio, Bolsonaro assinou decreto para facilitar o porte de arma de fogo no Brasil e aumentou o rol de armamentos considerados de uso permitido, ao ampliar o limite de energia de disparo de 407 para 1.620 joules. A mudança possibilitou acesso a calibres como .40 e 9 mm, antes classificados como de uso restrito, e a armas mais pesadas, entre elas carabinas e determinados tipos de fuzis.
Contestado na Justiça e alvo de derrotas no Congresso, o decreto ganhou novas versões depois, mas na última edição, de junho, a potência permanece a mesma. Em paralelo, o texto incorporou regra de que o Exército teria 60 dias para definir, arma a arma, qual deveria ser restrita.
A lei
Juristas afirmam, entretanto, que a legislação em vigor permite que presos provisórios ou até mesmo os que já receberam sentença se beneficiem da reclassificação. Por causa do decreto, eles passam a responder por porte ilegal de arma de uso permitido – e não mais, restrito.
“Por princípio constitucional, sempre que a nova lei for mais benéfica ao réu ou ao condenado, ela retroage”, diz a desembargadora Ivana David, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). “Enquanto não for declarada a inconstitucionalidade, o decreto deve ser aplicado tanto na primeira instância quanto em grau de recurso.”
No porte por uso restrito, a pena máxima é de 6 anos e o crime é equiparado a hediondo – ou seja, não há direito à fiança e só permite progressão de regime do sistema fechado para o semiaberto após cumprimento de 2/5 (réu primário) ou 3/5 (reincidente) da pena (até 3 anos e 7 meses). Já no uso permitido, a máxima é de 4 anos, cabe fiança e o preso pode sair da cadeia com 1/6 da pena (oito meses).
Metade dos presos por porte ilegal tem antecedentes
Segundo Ivana, é um equívoco associar o preso por porte ilegal a um perfil menos violento. “Antigamente, o cidadão que tinha um comércio costumava andar com arma para se proteger, mas isso acabou com o Estatuto do Desarmamento”, diz. “Hoje, quem é pego armado é o que chamamos de ‘criminoso em trânsito’, o indivíduo que, muitas vezes, está indo praticar um roubo ou fazendo segurança de traficante. Aquele cidadão honesto, que só esqueceu de renovar licença, é exceção.”
Para o coordenador do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, diminuir o período de encarceramento para esse perfil de detento seria um “efeito colateral” da flexibilização das armas. “Estamos falando de grande contingente de pessoas, muita delas perigosas, que se beneficiam diretamente do decreto”, afirma.
De acordo com estudo da organização, 49% dos presos por posse ou porte ilegal têm antecedentes criminais, a maior parte de roubo. “Muitas vezes, o flagrante por porte ilegal é o instrumento que a polícia tem para combater e diminuir a vitimização de outros crimes, como assaltos a veículos e saidinhas de banco”, diz Langeani.
Levantamento do Sou da Paz
Levantamento do Sou da Paz aponta que, hoje, há 5.344 presos provisórios ou condenados no sistema penitenciário de São Paulo pelo artigo 16 do Estatuto do Desarmamento, que trata de porte de arma restrita. Para chegar à estimativa de quem poderia ser contemplado pelo decreto de Bolsonaro, foram excluídos casos de armas adulteradas, que não são beneficiados pela mudança. Em São Paulo, 55% das armas de crime têm numeração raspada, segundo indica pesquisa de 2013.
“O Estatuto do Desarmamento prevê penalidade mais gravosa para armas adulteradas, com numeração raspada, por exemplo. O decreto não trouxe alterações para esses casos”, afirma a advogada criminalista Bruna Luppi, do escritório Bialski Advogados. “Isso tem um impacto relevante, se pensarmos na realidade da população carcerária.”
Na visão da advogada, o ambiente jurídico atual – com o decreto sendo questionado no Supremo Tribunal Federal (STF) e sem o Exército ter concluído a classificação de restrição das armas – pode desestimular que benefícios como redução de pena ou progressão de regime sejam concedidos. “Essas questões já foram arguidas por alguns colegas e juízes estão com a tendência de não se manifestar”, afirma.
O promotor Ricardo Silvares, do Centro de Apoio Operacional Criminal do Ministério Público Estadual (MPE-SP), pondera que, caso o suspeito responda por porte ilegal mas também por outro crime, o impacto do decreto diminui, ainda que consiga a redução. “As penas são somadas e só a do porte pode ser revisada”, diz.
O órgão do MPE-SP chegou a divulgar um informativo interno para orientar promotores, mas o impacto da possibilidade de reclassificação ainda é imperceptível, segundo Silvares. “É uma mudança ainda muito recente.”
Para comentar os dados, a reportagem procurou o Ministério da Justiça e Segurança Pública e a Casa Civil do governo Bolsonaro. As pastas não se manifestaram.