Família de Marielle reivindica legado e pluralidade que a vereadora representava
Se a língua portuguesa tem “saudade”, também a bantu, cultura que deu origem a diversos idiomas africanos, possui sua palavra difícil de traduzir: ubuntu.
Marielle Franco citava-a sempre que podia, como ao evocá-la num tuíte no 1º de janeiro de 2018, um ano após iniciar seu primeiro mandato político, como vereadora do PSOL no Rio, e 72 dias antes de ser assassinada aos 38 anos, ao lado de Anderson Gomes, seu motorista, num crime ainda sem solução.
Marielle optou por explicar o termo assim: “Nunca a filosofia ubuntu, ‘eu sou porque nós somos’, fez tanto sentido pra mim”.
A vereadora sempre foi múltipla. Desde que morreu, contudo, sua escalada como ícone ideológico, para sua família, veio com um custo.
Para corresponder à simbologia que a esquerda projetou nela, Marielle acabou tendo sua imagem reduzida a só uma parte do que era, segundo duas das pessoas mais próximas a ela.
“Preta, lésbica, favelada”, sim, mas muito mais do que isso, dizem à Folha, no restaurante de um shopping na zona norte carioca, sua irmã e filha, Anielle, 35, e Luyara, 20.
O debate em jogo: Marielle, para começo de conversa, era bissexual, não lésbica. Amou demais a mulher que se tornaria sua viúva, Mônica Benício, mas já foi casada e feliz com dois homens antes dela.
Não é uma discussão secundária: o grupo bissexual luta por visibilidade dentro da comunidade LGBTI+. Acham-se escanteados por aquele papo de “ah, essa pessoa tá só indecisa”, ou acharem que o bi é apenas um homossexual enrustido com medo de se assumir por completo.
Anielle e Luyara acham que há certa apropriação, por parte do movimento lésbico, da figura forte da vereadora. Em entrevista ao site brasileiro do jornal “El País”, Mônica já declarou: “Me reconhecer e dizer que sou sapatão é um ato político”.
Daí a viúva, com quem a família tem desentendimentos (mas não quer entrar no assunto), ser vista como a guardiã da história de Marielle.
Outra questão que Anielle e Luyara levantam: Mônica é branca, o que por si só não é nenhum problema. Mas, quando sua imagem monopoliza o posto de porta-voz da psolista, a questão da negritude — sempre caríssima a Marielle — acaba tendo menos espaço do que deveria, dizem.
“Rola um apagamento nosso, a gente fica de mãos atadas”, diz Anielle, que, assim como Mônica, pode sair candidata, em 2020, à mesma Câmara Municipal em que Marielle atuou.
“Minha mãe amava a Mônica para um caralho, é bom deixar claro que a gente nunca quis apagar isso”, continua Luyara. Só que separar caixinhas fixas para ela é, segundo a jovem estudante de educação física, um desserviço à sua história. É essa mania de classificar alguém apenas como “tu é preto, tu é lésbica, tu é isso ou aquilo”, afirma.
Marielle foi muitas coisas de uma vez só, e é essa personagem complexa que sua família luta para não cair no esquecimento.
Mônica é uma paixão antiga, com quem por anos a vereadora teve uma relação não oficial. Antes de as duas morarem juntos, e Luyara com elas, veio o casamento com Eduardo Alves, 51, o Edu.
Ele foi chefe de gabinete do hoje deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ), quando ele atuava na Assembleia Legislativa fluminense. Marielle trabalhou por anos com Freixo, que lhe foi apresentado por Anielle, de quem o parlamentar foi professor de história.
Esconder a importância que Edu teve na formação intelectual de Marielle é um contrassenso, afirma Anielle. Foi ele quem lhe apresentou autores como Rosa Luxemburgo, ícone da esquerda alemã assassinada há um século, aos 47, com um tiro — ninguém jamais foi responsabilizado pelas mortes, embora hoje seja consenso entre historiadores de que se tratou de um crime político.
Luyara lembra que, na casa onde morou com ele e a mãe, eram “duas paredes só de livros de todos os socialistas e comunistas”, com especial carinho por Karl Marx.
Como família, faziam churrascos numa laje em Bonsucesso (zona norte do Rio), iam a churrascaria e restaurante japonês, e Edu “gostava muito de cinema, e minha mãe sempre dormia [no meio do filme], ele ficava bolado”.
Tanto Edu quanto Mônica foram procurados pela Folha, mas não quiseram falar.
Marielle tinha 19 anos quando teve a única filha, com seu primeiro marido, o Caco, com quem “casou de véu e grinalda, num casamento de princesa que nossa mãe fez”, lembra a irmã. O nome de Luyara, que sua mãe escolheu após ver “Uiara” escrito num barco, veio de uma deusa indígena: a senhora das águas.
Após ser assassinada, a vereadora virou alvo de uma fake news: ela teria sido esposa de traficante, o que não poderia ser mais falso, afirma Anielle.
De tão bonitos, Caco e ela eram um “casal invejado”, conta. “Tinha muito bandido doido para casar com Marielle, e ela, a mais gostosona, ia pro baile direto.” Separaram-se quando a filha deles tinha quatro anos.
As irmãs pegavam “de tudo” nessa época, conta Anielle, rindo. Homem e mulher. Cria da Maré, um complexo de favelas no Rio, a futura vereadora foi Garota Furacão 2000, status cobiçado entre funkeiras no Rio dos anos 1990. Chegou a dançar em rede nacional e manter um caderninho com anotações de todos os bailes funk da cidade.
Resgatar todas as facetas de Marielle, dizem suas familiares, não é uma forma de diminuir a força que ela ganhou como uma mulher vinda da favela, uma feminista casada com outra mulher. A luta LGBTI+ era crucial para a vereadora.
Anielle e Luyara reclamam de ser vistas como “inimigas da causa” quando tentam mostrar que Marielle era, acima de tudo, uma mulher plural, que não se deixava aprisionar por rótulos.
“A gente já teve problema com isso”, diz a irmã, que na Flip (Festival Literário Internacional de Paraty) lançará “Cartas para Marielle”, uma “coletânea de imagens, cartas, desabafos e emoções vividas, após a fatídica noite de 14 de março de 2018”, o dia do assassinato.
Anielle conta já ter ouvido de pessoas, por criticar uma visão unidimensional da vereadora assassinada: “Ah, tá, uma pretinha muito raivosa”. Ou ainda: “Tá com inveja”.
De tão eclipsado que ficou esse outro lado na trajetória da psolista, chegaram a lhe perguntar se Luyara era fruto de inseminação artificial. Diz que também já foi chamada de homofóbica, por sustentar que Marielle era bi, e não lésbica (e tudo bem se fosse, mas não era).
Logo ela, que em redes sociais já escreveu: “Se vc é racista, misógino, lesbofóbico, homofóbico, transfóbico, LGBTQI+fóbico, etc, cure seu preconceito. […] Se vc esperava encontrar uma família despreparada e submissa, enganou-se. Se vc não aceita ver uma mulher favelada, negra e formada sendo protagonista, ature ou surte. E Se vc não é íntimo da Família de Marielle Franco, shut up!”.
E volta à baila a filosofia ubuntu a qual Marielle era tão apegada: “Eu sou porque nós somos”. Sempre no plural.
Da FSP