Federico Finchelstein: “Bolsonaro é um dos populistas mais próximos do fascismo que já vi”
“Eu a aguentei durante um tempo, até que não pude mais e lhe disse que seu marido não governava com os votos do povo, e sim com a imposição de uma vitória [militar]. A gorda não gostou nada”. A gorda era Carmen Polo, esposa do ditador espanhol Francisco Franco. A autora da frase é Eva Perón, a totêmica Evita, esposa do presidente argentino Juan Domingo Perón (1946-55 e 1973-74). O caso, ocorrido durante uma visita da primeira-dama argentina à Espanha, em 1947, aparece no livro Del Fascismo al Populismo en la Historia, o ensaio recém-publicado do historiador argentino Federico Finchelstein, e ilustra uma de sua tese centrais: que o populismo está na raiz do fascismo, mas o primeiro é intrinsecamente democrático.
“Não há fascismo sem ditadura, nem populismo sem eleições. E isto não é uma definição teórica, tem a ver com uma experiência de democratização histórica que surge sobretudo logo depois da Segunda Guerra Mundial e vai chegando a outros países. Não há ditadores populistas. Quando deixa de haver eleições reais, deveríamos falar de ditadura, não de populismo”, afirma ao EL PAÍS o historiador Finchelstein (Buenos Aires, 1975), professor da New School for Social Research e do Eugene Lang College, de Nova York, e autor de várias obras sobre fascismo, populismo e o Holocausto.
Para apresentar seu livro nesta sexta-feira na Casa América de Madri, Finchelstein cruzou o Atlântico em sentido inverso ao das suas ideias oito décadas antes. Logo após a Segunda Guerra Mundial, com uma Europa abrindo os olhos para o alcance do horror nazista, e com a África e Ásia majoritariamente imersas no colonialismo ou sob regimes de partido único autoritário, a América Latina era o berço natural dessa “reformulação” do fascismo que é o populismo, argumenta. “Era o único lugar onde os fascismos não tinham perdido a legitimidade e havia um marco democrático. Não há nada de especial na América Latina naquele sentido”, observa. Primeiro foi o peronismo, em 1946. Pouco depois, o regime de Getúlio Vargas (1951) no Brasil. Ambos percorreram um caminho similar: chegar ao poder a partir da ditadura e a destruíram por dentro para criar uma democracia. “O fascismo, nos casos mais paradigmáticos, que são a Alemanha e a Itália, chega ao poder através da democracia e cria uma ditadura. O populismo faz o contrário”, observa, sobre seus inícios.
A situação se tornou mais complexa nas décadas seguintes, com populismos em diferentes continentes – tanto de esquerda como de direita – articulados em torno dos mesmos elementos: a identificação entre líder e povo, o culto semirreligioso ao dirigente, a substituição das categorias ideológicas clássicas pela dicotomia entre os de cima e os de baixo (“meus sujinhos”, como os chamava Evita), o menosprezo pelos opositores e a imprensa crítica… Finchelstein cita os casos, com modelos neoliberais, de Carlos Menem na Argentina, Silvio Berlusconi na Itália e Fernando Collor de Mello no Brasil. Ou, da esquerda ou com estampa social, dos Kirchner, de novo na Argentina, e de Hugo Chávez na Venezuela. Entretanto, opina o especialista, “o que havia de populismo na Venezuela se perdeu, e estamos falando de formas que estão mais próximas de uma ditadura”.
Em alguns casos, o populismo significou ao mesmo tempo “uma ampliação e uma limitação de direitos”. Um “pacote”, nas palavras do especialista, pelo que “os pobres são menos pobres e os ricos menos ricos”, mas o líder “é o único dono da verdade, e aqueles que não estão de acordo passam a ser definidos não só como opositores políticos, mas também como o antipovo. Isto soa muito fascista porque tem origens fascistas”, acrescenta.
Ao longo do livro o nome de Donald Trump aparece com frequência como exemplo de uma tendência que preocupa Finchelstein: a emergência de “um novo populismo que combina o neoliberalismo com ranço fascista”. “Não é uma volta do parafuso nem um círculo completo, mas, embora a história do populismo, à esquerda ou à direita, sempre tenha a ideia de reformular a democracia em termos autoritários sem voltar à tradição fascista, estes novos populistas fazem uma tentativa explícita de voltar a elementos centrais da tradição fascista: racismo, violência política e, em casos como o de Bolsonaro e Trump, elogios teóricos da ditadura”. O presidente brasileiro é, acrescenta, “um dos populistas mais próximos ao fascismo que já vi”.
O racismo foi justamente uma das diferenças entre os populismos de esquerda e os de direita. Os primeiros “têm uma visão de povo que é autoritária, mas que permite ser aceito se a pessoa estiver de acordo. Nos de direita, o povo também é construído por coisas que a pessoa não decide, como a cor da pele”.
Finchelstein recorre ao seu país para exemplificar como o populismo é mais um continente que um conteúdo, uma espécie de gaveta onde cabem diferentes categorias, como os torcedores de um time que não viram a casaca se o treinador e o estilo de jogo mudarem. Ou, como disse recentemente o líder sindical Hugo Moyano: “Os peronistas são assim, um dia dizemos uma coisa, e depois outra”.
“O caso da Argentina é quase esquizofrênico”, sentencia o especialista. “O peronismo foi o veículo para diferentes expressões de democracia autoritária: de ultraesquerda; nacionalista e popular, como o kirchnerismo; liberal, como Menem…”. Sua força, décadas depois, é indiscutível. Para as eleições de outubro, o presidente Mauricio Macri – cujo estilo Finchelstein define como “populismo light” – escolheu um peronista conservador como número dois. Seu principal rival é uma chapa peronista com Cristina Fernández de Kirchner como candidata a vice. A terceira candidatura também é peronista. “Praticamente não há nenhum programa. Pedem que confiemos em um personagem ou outro. Nas propostas das três candidaturas não aparece um tema tão central como a despenalização do aborto”, lamenta.
Do El País