Moro confessa crime de violação de sigilo funcional
O Brasil está estarrecido com a recente publicação de um dos mais importantes jornais deste país, a Folha de S.Paulo, denunciando a prática de crime de violação de sigilo funcional previsto no artigo 325 do Código Penal.
Pelo que se constata desse extraordinário furo de reportagem estamos diante de um verdadeiro caso de Impeachment do Ministro da Justiça, divulgado pelo presidente da República, Jair Bolsonaro e, pasmem, confirmado pelo próprio Ministério de Justiça, comandado pelo outrora todo poderoso chefe da força-tarefa da “lava jato”, o ex-juiz Sergio Moro.
Para contextualizar esse tema, pedimos vênia para transcrever toda a noticia da Folha, verbis:
1. Os fatos
“Planalto não explica por que ministro repassou dados de investigação que tramita em segredo em MG.
O Ministério da Justiça confirmou, em nota enviada à Folha, que Jair Bolsonaro “foi informado sobre o andamento das investigações em curso” sobre as candidaturas laranjas do PSL, sigla à qual o presidente é filiado. A pasta acrescentou que “as informações repassadas não interferem no trâmite das investigações”.
O inquérito, porém, tramita em segredo na Justiça Eleitoral de Minas Gerais, conforme a Folha informou nesta sexta-feira (5). Durante uma entrevista coletiva à imprensa no dia 28 em Osaka, no Japão, Bolsonaro revelou que obteve do ministro da Justiça, Sergio Moro, uma “cópia do que foi investigado pela Polícia Federal”.
Procurado na segunda-feira (1º) com uma série de perguntas sobre o assunto, o Palácio do Planalto não havia se manifestado até a publicação deste texto.
A Folha quis saber, entre outros pontos, por que o ministro Moro encaminhou uma cópia da investigação ao presidente e qual o amparo legal para o repasse de informações cobertas por segredo de Justiça. O Planalto não respondeu.
A Folha também fez uma série de indagações ao Ministério e ao ministro Moro, por meio de sua assessoria, mas não houve respostas exatas sobre os pontos questionados.
A reportagem quis saber, por exemplo, como Moro teve acesso ao inquérito protegido por sigilo e por que decidiu repassar cópia para Jair Bolsonaro.
O Ministério encaminhou apenas uma curta nota na terça-feira (2), que afirma: “O presidente da República foi informado sobre o andamento das investigações em curso [laranjas do PSL]. Também foi informado que existem outras investigações em andamento que tratam de possíveis irregularidades envolvendo questões relativas a agremiações partidárias. Todas as informações repassadas não interferem no trâmite das investigações, que correm com total independência na Polícia Federal”.
A Polícia Federal, também procurada na segunda-feira, confirmou na terça que as investigações correm sob segredo de Justiça, mas não abordou a questão do repasse dos dados para Bolsonaro.
“Esclarecemos que existem diversos inquéritos em andamento que investigam candidatos de diferentes partidos políticos, em várias unidades da federação. Importante salientar, entretanto, que as investigações que versam sobre possíveis crimes eleitorais (que apuram supostas candidaturas de laranjas) só podem ser instauradas mediante requisição expressa da Justiça Eleitoral e que tais procedimentos correm sob segredo de justiça”, afirmou a PF, em nota”.
Indagada sobre por qual motivo Moro teria repassado dados da investigação para Bolsonaro, a PF acrescentou: “As manifestações do Ministro devem ser esclarecidas pela assessoria do próprio MJ [Ministério da Justiça]”.
Sobre as investigações em Minas Gerais, o TRE (Tribunal Regional Eleitoral) de Minas confirmou à reportagem que as investigações sobre as candidaturas laranjas do PSL tramitam sob segredo de Justiça.
“Tramita [com segredo] desde sua instauração na Polícia Federal e foi decretada pela autoridade policial, conforme artigo 20 do Código de Processo Penal”, disse o TRE-MG.
Revelado pela Folha no início de fevereiro, o caso das laranjas do PSL é alvo de investigações da Polícia Federal e do Ministério Público em Minas e em Pernambuco e levou à queda do ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gustavo Bebianno, que comandou o partido nacionalmente em 2018.
A Polícia Federal vê elementos de participação do Ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, no esquema em Minas e apreendeu documentos em endereços ligados ao PSL-MG.
Reações
O líder da oposição no Senado, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), protocolou nesta sexta-feira na comissão diretora da Casa um requerimento para que Moro “esclareça, por escrito”, a notícia de que forneceu os dados da investigação sobre o PSL para Bolsonaro.
Segundo Randolfe, a notícia sobre o repasse dos dados “é extremamente grave” pois “coloca em dúvida a lisura e a imparcialidade das investigações por parte da Polícia Federal”.
O senador pediu que Moro seja indagado se está ciente da lei que estabelece que “é dever do Estado controlar o acesso e a divulgação de informações sigilosas produzidas por seus órgãos e entidades, assegurando a sua proteção”.
Randolfe fez uma comparação entre o episódio e o que envolveu um delegado da PF “acusado pelo TRF [Tribunal Regional Federal] da 4ª Região de violar o sigilo funcional do cargo por ter revelado ao ex-deputado André Luiz Vargas a existência de investigação sigilosa deflagrada”.
O presidente da ADPF (Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal), Edvandir Felix de Paiva, disse à Folha que não sabe a que o presidente se referiu quando declarou que teve acesso à apuração, mas que Bolsonaro é um terceiro e, em tese, não poderia ter acesso a uma investigação sigilosa.
“Só posso falar em tese. Em tese nós sempre queremos acreditar que jamais um terceiro vai ter acesso a uma investigação. O presidente, apesar de ser autoridade máxima de um país, é sempre um terceiro, ele não deve ter acesso a investigações em andamento”, disse o representante dos delegados.
Quanto à determinação genérica de Bolsonaro para que a PF investigue outros partidos além do PSL, também revelada pelo próprio Bolsonaro na entrevista em Osaka, Paiva afirmou que uma investigação desse tipo só poderá ser aberta se houver indícios de crime.
“Tem que ter uma notícia-crime. Um inquérito tem que ter justa causa para instauração, um indício de que houve um crime. Se o presidente tiver indício de que houve crime e apresentar como notícia-crime, a instauração tem que ser feita. Genericamente não é possível, porque senão vira fiscalização, e a PF não é órgão de fiscalização”, disse Paiva”.
2. O direito
O nosso Código Penal disciplina distintamente a violação do segredo profissional (artigo 154) e a violação do sigilo funcional (artigo 325), reconhecendo a necessidade de proteger o sigilo de determinados atos praticados pela Administração Pública, que merecem, não raro, maior reprovação social, prevendo, inclusive, sua forma qualificada.
O bem jurídico protegido é a Administração Pública, sua moralidade e probidade administrativa. Protege-se, na verdade, a probidade de função pública, sua respeitabilidade, bem como a integridade moral de seus funcionários, e, particularmente, neste dispositivo legal, a fidelidade do funcionário público com os misteres da liturgia do cargo que exerce.
Acrescida, é verdade, da relevantíssima circunstância de o segredo do fato, que deve ser mantido, chegar ao conhecimento do sujeito ativo em razão de cargo público (Ministro da Justiça). Convém registrar, no entanto, que esse dispositivo incrimina somente a divulgação de segredo relativo ao exercício de função pública (em razão de cargo público), visto que o sigilo relacionado à atividade privada é protegido pelos artigos 153 e 154, ambos do Código Penal.
Sujeito ativo desse crime só pode ser quem tem ciência de segredo em razão de cargo (público).
Trata-se de uma modalidade muito peculiar de crime próprio, uma vez que a condição especial não se encontra no sujeito ativo propriamente — funcionário público —, mas na natureza da atividade ou função em razão da qual tem a possibilidade de ter ciência do sigilo funcional.
Enfim, embora não diga expressamente o texto do artigo em exame, que sujeito ativo somente pode ser funcionário público, ainda que o seja transitoriamente, como autoriza o artigo 327 do Código Penal.
A conduta praticada por Sérgio Moro, como ministro de Justiça, foi revelar segredo que significa contar a alguém (presidente da República) fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação que é tornar possível ou acessível seu conhecimento, sendo duas, portanto, as condutas previstas no artigo 325 do Código Penal, que têm o seguinte significado: a) revelar (desvelar, declarar, divulgar) fato de que o sujeito ativo tem conhecimento em razão do cargo (segredo de ofício) e que deva permanecer em segredo.
Revelar tem uma abrangência mais restrita do que divulgar, que implica um número indeterminado de pessoas, ao passo que para revelar é suficiente que conte ou declare a alguém; b) facilitar (pôr à disposição, facultar) a revelação (o funcionário propicia dolosamente a descoberta).
Essa matriz típica objetiva a proteção do sigilo funcional específico, próprio e típico da função pública, para manter secretos ou sigilosos fatos relevantes, inerentes à função pública, punindo a violação do sigilo de fatos que se tem conhecimento no exercício de certos cargos públicos.
A proteção inclui o segredo oral e não apenas o documental, ou seja, não importa a forma ou o meio pelo qual o funcionário toma conhecimento do fato ou do segredo: por escrito, oralmente, compulsando documentos etc.; desde que tal conhecimento tenha ocorrido em razão do cargo público que exerce, tampouco é relevante o meio ou forma pela qual faz a revelação, desde que, ressalta a descrição típica, se trate de fato que deva permanecer em segredo.
Nesta hipótese, se faz presente aquela relação causal entre o conhecimento do segredo e a especial qualidade do sujeito ativo (em razão de cargo público), isto é, um nexo causal entre o exercício de cargo ou função pública – ministro da Justiça – e o conhecimento do segredo, que é exatamente o aspecto revelador da infidelidade funcional do sujeito ativo (Moro), que a norma penal pretende proteger e foi por ele infringida dolosamente.
Em outros termos, a ciência do fato deve chegar ao conhecimento do sujeito ativo exatamente em razão do cargo que ocupa (ministro da Justiça, chefe da Polícia Federal).
No entanto, não é qualquer fato ou segredo que merece a proteção penal. Para que o sigilo de fato justifique a proteção penal é necessário que reúna dois elementos:
(i) um negativo — ausência de notoriedade do fato, isto é, que não seja de conhecimento público ou daqueles fatos cuja publicidade lhe seja inerente, sem violar o direito à privacidade individual, que é o caso de investigações criminais com sigilo decretado pela autoridade competente;
(ii) outro positivo — dever funcional de preservá-lo, cujo sigilo funcional é exigido pela elementar típica “que deva permanecer em segredo”, exatamente como é o caso concreto da divulgação total da investigação sigilosa dos “laranjas do PSL.
Na verdade, a lei penal, ao proteger o sigilo funcional, assegura igualmente o interesse da Administração Pública, que deve gozar da mais absoluta confiança da população em geral, que é identificado como dever de fidelidade.
O dever de fidelidade — segundo Hely Lopes Meirelles — “exige de todo servidor a maior dedicação ao serviço e o integral respeito às leis e às instituições constitucionais, identificando-o com os superiores interesses do Estado. Tal dever impede que o servidor atue contra os fins e os objetivos legítimos da Administração”[1].
Aliás, o ministro da Justiça nem deveria saber do conteúdo das investigações, mas apenas informações sobre o seu andamento, como chefe administrativo da Polícia Federal. Mas, na hipótese, Moro foi mais longe, muito mais longe, ao não apenas revelar segredo funcional a um terceiro estranho ao inquérito, in caso, um “terceiro qualificado” – como diria o douto vice-presidente Mourão – o presidente da República, o capitão Jair Bolsonaro, e o mais grave, pessoa diretamente interessado no resultado das investigações, posto que os investigados são integrantes do seu próprio partido político, o PSL.
É tão “interessado” o presidente que, certamente, revelará (ou já revelou) ao zero dois, ao zero três, quatro etc., todos seus filhos, igualmente “interessados” nas investigações, aliás, e um deles já investigado por vários crimes graves. E pior: o próprio presidente, por sua vez, já revelou ao seu subalterno a quem determinou que lesse os autos das investigações que Moro, criminosamente, lhe ofertou, alegando falta de tempo.
Consuma-se o crime de violação de sigilo funcional com a revelação do segredo (1ª parte) ou com sua facilitação (2ª parte); consuma-se no momento em que o sujeito ativo (Moro) revela a terceiro fato que teve ciência nas circunstâncias definidas no tipo penal, isto é, em razão do cargo e que deve ser mantido em segredo; consuma-se, enfim, com o simples ato de revelar, independentemente da ocorrência efetiva de dano, pois é suficiente que a revelação tenha potencialidade para produzir a lesão, que, se ocorrer, constituirá o exaurimento do crime, e, nessa hipótese, qualifica a infração penal (pena de dois a seis anos de reclusão, e multa). Aliás, o dano à Administração da Justiça é automática, rompendo o sigilo decretado e prejudicando as próprias investigações.
Para a tipificação do crime de violação de sigilo funcional é suficiente a revelação a uma só pessoa, ao contrário do que ocorre com o crime de divulgação de segredo (artigo 153)[2], por exemplo, que necessita ser difundido extensivamente, para um número indeterminado de pessoas. Em síntese, “revelar” pode ser somente para uma pessoa, enquanto “divulgar” implica, naturalmente, um número indeterminado delas. Revelar é menos que divulgar.
Para concluir, o parágrafo 2º do artigo 325 qualifica o crime quando resultar dano para a Administração Pública. Todo esse dispositivo legal disciplina crime de perigo, tanto no caput quanto em seu parágrafo 1º; contudo, se de qualquer das condutas sobrevier dano, quer para a Administração Pública, quer para terceiro, configurar-se-á a modalidade qualificada (parágrafo 2º) (crime qualificado pelo resultado), que, na hipótese, é inevitável. Aliás, o dano nem precisa ocorrer: basta a potencialidade lesiva da conduta (figura qualificada). Na hipótese, verifica-se o seu exaurimento, sobrevindo dano à Administração Pública ou a terceiro, in caso, a própria Justiça e os investigados.
É inegável que a produção de dano aumenta consideravelmente o desvalor do resultado, justificando-se a maior reprovabilidade pessoal do injusto típico, com a consequente elevação da sanção penal cominada.
[1]. Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo brasileiro, 16. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1991, p. 389.
[2]. Ver nosso Tratado de Direito Penal, 6. ed., São Paulo, Saraiva, 2006, v. 2.
Do ConJur