O mundo não entende como nos metemos nessa

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Leia a coluna de Josimar Melo, crítico de gastronomia, autor do “Guia Josimar”, sobre restaurantes, bares e serviços em São Paulo.

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Sombras num país luminoso

“Mas o que está acontecendo com o Brasil?” Eis uma pergunta recorrente, mas relativamente nova, que tenho ouvido pelo mundo.

Sempre testemunhei, em outros países, a forma como a imagem do Brasil exerce um certo magnetismo luminoso, positivo.

Parece que temos um lugar cativo no imaginário do mundo, embalado pela música (até antes da bossa nova, com Carmen Miranda); pelo futebol (mesmo depois da era Pelé, com as seleções de 1982, 1994 e 2002, embora hoje abalado pelo estado de petição de miséria); e pela paisagem que faz da múltipla geografia um caleidoscópio de belezas naturais e até, aqui e ali, urbanas.

Na década de 2000 a curiosidade e o interesse despertados pelo país ganharam novo patamar. As pessoas também me falavam da economia e do progresso social. “Um operário fazendo tudo isso? E na maior paz?”

E toca eu a explicar mais ou menos o que o Brasil estava vivendo, com meu olhar crítico mas ao mesmo tempo feliz pelo fato de que a miséria de milhões estava sendo reduzida (embora sem tocar na crescente fortuna de meia dúzia).

Meus interlocutores mundo afora são muitas vezes profissionais da gastronomia ou turismo, mas principalmente jornalistas. São esses os mais informados, os mais curiosos, os mais inquisidores. E para os quais não basta um mero resuminho da situação, é preciso contar mais detalhes e razões.

Nunca é fácil. Mas nunca foi tão difícil como agora.

Já nos anos recentes a coisa se complicou. Sim, há uma corrupção pornográfica.

Então a presidente eleita foi derrubada porque estava roubando?, me perguntavam num jantar em Melbourne, em 2017.

“Não, ela não comprou iate, nem casa em Miami nem abriu conta na Suíça. Foi acusada de uma manobra fiscal para pagar despesas, o que todos os presidentes anteriores fizeram, mas levaram somente um pito do Tribunal de Contas.”

Incredulidade geral. O francês conta a sequência de presidentes incompetentes que desfilam pelo país, mas sempre trocados na eleição seguinte. “Não deveria ser assim?”

Na sobremesa, os jornalistas já exclamavam “Então foi golpe mesmo! Dado pelo próprio Congresso!”. E aí eu tinha que explicar que aquela gente sórdida e corrupta que votou no impeachment de 2016 não confiava na presidente e queria um grande acordo da turma da casa grande, pois depender de um governo da senzala, por mais simpático que fosse, não dava mais.

Muito complicado para um jantar só. Mas fichinha, se comparado com o que tenho passado em 2019. Por mais que a eleição de Trump tenha mostrado a possibilidade de um maluco com uma mente medieval virar presidente, isso parecia demais para o idílico Brasil.

Tenho cá minhas teorias sobre como um fascista desqualificado (como militar, como político, como ser humano) foi eleito aqui (mesmo com a maioria dos eleitores, 60%, votando no adversário ou se abstendo). Mas como explicar em poucos minutos?

Em Singapura, durante um evento internacional em junho último, encontrei-me com um comitê de jornalistas de 26 países do qual faço parte. Para minha sorte (pois fascistas estragam qualquer refeição) constato que são todos democratas, ainda que matizados pela situação de cada país.

Estavam todos abismados com o Brasil. Nos diversos sotaques, mesmo os que vivem sob diferentes formas de autocracia —como meus colegas chineses e russos— pareciam não acreditar que o Brasil, sem ser pela força de um golpe militar, tivesse escolhido um presidente fascista.

Para eles, nosso país é marcado pela alegria de viver, de cantar, de gingar no mar e pela criatividade na superação das dificuldades. Como este país luminoso escolheu um cara que ama ditaduras, torturas, preconceito, agrotóxicos, desmatamento, violência armada, extermínio de minorias, massacre trabalhista etc.?

Tentei explicar que os brasileiros votaram no Bozo pela promessa de segurança (já que aquele que simbolizava melhorias de vida fora retirado da eleição pelo juiz cúmplice do palhaço) e que, pelas pesquisas, a população é contra essas propostas obscurantistas. Aí ninguém entende mesmo.

Mas passando em seguida uns dias na Turquia, pude falar menos e perguntar mais. Encontrei interlocutores otimistas com derrotas do governo autoritário de Erdogan.

Mesmo após 16 anos moldando aos seus desígnios todas as instituições do país, ele perdeu as eleições municipais nas duas principais cidades do país, Ancara e Istambul. Um raio de luz no horizonte. Que espero que no Brasil brilhe em menos tempo.

Da FSP