Renato Janine: com plano do MEC, as universidades podem falir

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Foto: Ailton de Freitas / Agência O Globo

Lançado na última quarta-feira pelo governo federal, o plano “Future-se” , que pretende incentivar as federais a captarem recursos privados, recebeu elogios, mas também muitas críticas. Renato Janine Ribeiro está entre os que engrossaram o coro contra o programa.

Ex-ministro da Educação, ele permaneceu no cargo por cinco meses, entre abril e setembro de 2015, no governo de Dilma Rousseff. Em entrevista ao GLOBO, Janine afirmou que o projeto do MEC pode acabar “quebrando” as universidades e disse que o governo precisa ouvir as instituições antes de impor um plano.

Segundo Janine, a estratégia adotada pelo MEC pode gerar insegurança ao orçamento das instituições e acabar desidratando áreas do conhecimento que não têm interesse de mercado. O plano do MEC prevê R$ 102,6 bilhões em incentivos para captação de recursos privados. Esse valor não será anual, mas administrado para gerar receitas que serão usadas no financiamento de diversas atividades das instituições, de acordo com necessidades específicas e a apresentação de resultados.

O valor é composto por recursos de patrimônios imobiliários da União, de fundos constitucionais, de leis de incentivos fiscais, de recursos da Lei Rouanet e de fundos patrimoniais.

Na quarta-feira governo apresentou o projeto “Future-se” qual sua opinião sobre o plano apresentado pelo governo para as universidades federais?

É um projeto preocupante, porque foca somente em certos setores da vida universitária, que são aqueles setores que podem ter repercussão empresarial. O projeto é silencioso sobre setores que não têm impacto nesse âmbito, como as humanas e as ciências básicas. Há uma ingenuidade nesse projeto de achar que uma ligação maior com as empresas vai ser perfeita. Muita gente pensa “vamos parar com a pesquisa pura e fazer pequisa aplicada”. Acontece que para chegar lá temos que ter muita ciência básica e pura. Além disso, muitas questões estão vagas. O MEC vai definir certos padrões que serão adotados pelas universidades que aderirem, mas não existe nenhum compromisso sobre quais serão os padrões, é um cheque em branco.  O Ministério não pode negociar desse jeito com instituições que têm vocação própria, instituições como universidades, assim como o Poder Judiciário,  as Forças Armadas, a diplomacia, só existem à medida que têm autonomia muito forte. Não dá para politizar tudo isso, estabelecer regras cambiáveis, tem que ser regras muito negociáveis, não podem ser impostas. Um terceiro ponto que achei complicado no projeto é toda a ideia de que as universidades vão especular na bolsa, que haverá uma série de coisa para as universidades, por conta de aplicações e fundos imobiliários, deixa muito inseguro o orçamento delas. Elas precisam ter segurança de que vão poder pagar os salários,  a conta de luz, quanto ter dinheiro para comprar reagentes, livros, realizar congressos, convidar professores. Se isso tudo vai depender da especulação na bolsa, você não tem menor ideia de quais recursos vão ter efetivamente as universidades. As universidades podem falir, e aí destrói-se um patrimônio construído por décadas, gerações.

O projeto pode afetar negativamente a área de pesquisa no Brasil?

Uma área importante que é a das Ciências Agrárias tem muita ciência aplicada, nas engenharias também. Mas ciência aplicada não é tão simplista assim, ela requer uma pesquisa básica por trás. Precisamos tê-la, não podemos simplesmente comprar essa pesquisa básica. Sempre houve quem dissesse para comprarmos dos Estados Unidos, mas há elementos que têm a ver com condições nossas. Por exemplo, se olharmos mundialmente, para a área agrária o produto mais importante é o trigo. Uma pesquisa sobre trigo vai ter mais impacto do que uma sobre soja, mas o Brasil planta muito mais soja do que trigo. Então é preciso fortalecer a pesquisa básica sobre a soja. Nós provavelmente pesquisamos melhor a soja.

A produção de pesquisas de interesse público está ameaçada por esse projeto?

Com toda certeza. Tem todo um dinheiro que foi investido pela sociedade brasileira na universidade pública, um século de investimento pelo menos e esse dinheiro já criou o sistema que está pronto. Está se comprando muito barato um patrimônio que custou muito caro. É preciso ver onde há pontos de interesse convergentes. Não tenho nada contra cooperação com empresas. Desde o governo do Itamar Franco aos governos do PT, todos apoiaram a cooperação com o setor privado, mas não é algo tão simples. Pesquisa é risco, não sabemos o resultado que ela vai gerar. Muitas vezes, o empresário não quer investir porque aquilo pode dar em algo maravilhoso ou em nada. O empresário quer que o governo coloque dinheiro, arque com as perdas e fracassos e repasse de graça os ganhos. Isso é uma coisa complicada. Se o governo vai pagar tudo isso, teria que ter um retorno para a sociedade.

Acredita que há risco de, com a apresentação desse projeto, o MEC reduzir o orçamento que repassa às universidades?

Com certeza tem a intenção de gastar menos dinheiro com educação, está visível, é possível ver isso nas declarações desse governo o tempo todo. É complicado. Nos países que se desenvolvem, como Coreia, Singapura, Xangai, nesses lugares todos têm uma preocupação em aumentar investimento e não em reduzir. Existe uma desresponsabilização do Estado pela pesquisa e pela educação, o resultado disso só pode ser ruim, não tem como ser bom.

Qual seria a saída para resolver o problema de financiamento das universidades e preservar sua função para a sociedade?

Antes de mais nada o ministério  deveria ter discutido com as universidades, e não chegar com um projeto pronto depois de falar muito mal das universidades. O Ministério deveria ter a modéstia de discutir e entender que está chegando agora e conhece muito pouco. E que tem gente que conhece muita coisa e está trabalhando nisso há muito tempo. Toda vez que uma pessoa minimiza seu adversário, corre risco de cometer erros. Tem muita coisa que já está sendo realizada há muito tempo. O diálogo não pode ser uma imposição, não pode ser o governo achando que tem razão e dizendo que é tudo ou nada. Se você eventualmente levar uma universidade à falência porque ela aplicou num fundo que quebra, isso é muito grave. Um bem patrimonial brasileiro não pode ser levado à falência desse jeito. É preciso preservar isso o máximo que puder. Você vai formar pessoas para exercício profissional. No MIT, nos Estados Unidos, estão utilizando cada vez mais as humanidades. Precisamos das humanidades. Eles (o governo) chegaram muito convictos de que tudo que existe está errado. Essa situação é muito delicada. Exige mais modéstia, mais escuta.

Acha que o governo enxerga as universidades federais como adversárias?

Sim. Esse governo partiu de uma visão curiosa da educação. É o primeiro governo no Brasil e talvez no mundo, em muitos anos,  que não vê a educação como aliada, mas como inimiga. Eles falaram mal de Paulo Freire. Chega a um ponto em que a educação no Brasil ficou muito fraca em função disso. Eu acredito que para eles o grande problema do Brasil seria a imoralidade. E eles chamam de imoralidade a emancipação da mulher, a liberdade sexual, o reconhecimento das orientações sexuais, o aumento da representaçao dos negros na sociedade. Eles acham que a “culpa” dessa “imoralidade” estaria numa educação mais aberta. Por isso atacam as causas emancipatórias, os grupos que querem igualdade e a própria educação.

Que prejuízos isso pode trazer?

Para calar todas essas questões que citei, eles imaginam uma educação inteiramente voltada para produção e o mercado. E eles não sabem que o próprio mercado quer a inteligência, o mercado não quer as pessoas que foram treinadas apenas. Há uma diferença entre treinamento e educação. No Vale do Silício não tem gente treinada, tem gente educada. Se tirarmos todo o aspecto de humanas da Educação,  faremos treinamento e não educação, porque as pessoas não saberão discutir o que estão fazendo. Óbvio que o Brasil tem que produzir mais, mas se o Brasil produzir mais agricultura porque está desprezando o meio ambiente, isso vai se  tornar muito negativo para sociedade brasileira e vai vender menos para o exterior. Há um risco que eles aparentemente não percebem. Há no atual governo terraplanistas, pessoas que negam o aquecimento global. Tudo isso diz respeito à Ciência. Como fazer desenvolvimento econômico sem ciência? O governo pensa: “vamos fazer uma formação técnica”. Ótimo, mas uma formação técnica não é inimiga de uma formação educacional mais ampla. Tem que ir além de apertar o botão, tem que saber para quê.

Observando os projetos que têm sido apresentados pelo governo, é possível projetar um cenário para a educação  brasileira nos próximos cinco anos?

O pior é colocar em risco a estabilidade dos orçamentos. As universidades vão ficar com orçamentos muito instáveis. A universidade vai depender de ter aplicado no fundo correto, como isso é capital especulativo, pode ter universidades quebrando. O pior risco que tem é que universidades quebrem. Eles falam que tem que melhorar gestão, governança, mas tem um limite que você não controla. Se você escolheu determinado fundo para aplicar, você não tem autoridade para saber se esse fundo vai subir ou vai cair. Essa quebra significaria uma destruição de investimentos feitos, de pesquisa em andamento, de formação de pessoas. Fora isso, quando a gente olhamos o projeto, não vemos definição de finalidades ou metas. É muito vago. Qual a vocação do Brasil? Precisamos nos voltar para isso.

O governo falou que o projeto pretende dar autonomia às universidades, mas, ao mesmo tempo, tem feito intervenções nessas instituições.

É um contrasenso. Eles fazem um uso muito curioso da palavra liberalismo. Eles entendem como liberalismo a retirada do papel do Estado, mas só em certas coisas. Nos costumes eles querem uma intervenção radical do Estado. Querem que o Estado esteja lá para reprimir trans, por exemplo. O que não querem que o estado intervenha é para equilibrar o poder econômico. A democracia é uma tentativa de equilibrar o poder religioso e o poder econômico. Na época da Revolução Francesa, fazer democracia era limitar o poder religioso. Depois, passou a ser limitar o poder econômico. Mas, para eles não é isso. O liberalismo é uma concepção de que o ser humano tem uma liberdade que faz cada um de nós diferentes. O MEC não deve interferir, deve respeitar a autonomia das universidades. Quando vai no sentido de limitar a liberdade das universidades, ele faz um trabalho ruim.

De O Globo