Fernando Cavalcanti

‘Tabata não manteve sua consciência de origem de classe’, diz Erundina

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Aos 84 anos, Luiza Erundina, deputada federal pelo PSOL, cumpre seu sexto mandato na Câmara dos Deputados em Brasília.

Sua vida é marcada pela política – conta que fez esta opção de forma tão radical que acabou decidindo não constituir família, não ter filhos. Acumula no currículo os cargos de vereadora, deputada estadual e prefeita da cidade de São Paulo. Pelo PSOL, cumpre apenas o seu segundo mandato.

Em meados da década de 90, Erundina foi suspensa por não ter seguido a orientação do seu partido na época, o PT, de não participar do governo de Itamar Franco, e ter aceito o convite presidencial para se tornar ministra-chefe da Secretaria de Administração Federal. Depois de um ano afastada das atividades partidárias, migrou para o PSB.

Haveria alguma semelhança entre a situação vivida por Erundina à época, com a dissidência de parlamentares do PDT e PSB na votação da reforma da previdência? Embora as legendas tivessem fechado questão contra a matéria, o que indica que nenhum de seus parlamentares poderiam votar diferentemente do posicionamento do partido, Tabata Amaral e outros sete deputados pedetistas e onze pessebistas, votaram a favor.

Para Erundina, são casos diferentes. Os parlamentares, segundo a psolista, estão prejudicando a população, enquanto ela, em suas palavras, “estava optando para usar a própria experiência para ajudar a sociedade brasileira”.

“Eu não estava fazendo uma opção entre uma coisa que era boa pro povo e outra que era ruim para o povo”, diz. “Eu fiz uma opção arriscada e paguei um preço, mas na política também se paga um preço pela coerência”.

Sobre Tabata Amaral, a quem foi comparada durante a corrida eleitoral, diz que a deputada “não manteve sua consciência de origem de classe”.

Prestes a completar 40 anos desde sua primeira filiação a um partido, garante que mantém a mesma visão política de sempre e exemplifica com seu voto contra a reforma da previdência. Erundina diz que a reforma extrapola a questão econômica. “A nova reforma da previdência mostra que não mudamos de governo, mas de regime. Não estamos em um regime democrático de direitos, mas um regime autoritário”, conclui.

Você saiu do PT quando aceitou o cargo de ministra chefe da Secretaria de Administração Federal do governo do Itamar Franco. Mas antes de sair do partido, passou por uma suspensão. Os parlamentares do PDT também enfrentam agora esta perspectiva por terem votado a favor da reforma da previdência.  

Foi bem diferente. Eles estão contrariando o partido. O partido fechou questão contra a matéria. Eles contrariaram a decisão partidária.

Parlamentares não podem contrariar decisões partidárias?

Caso seja razoável, sim. Na ocasião em que saí do PT, por exemplo, foi porque o partido optou por não participar do governo de Itamar Franco. Ao meu ver, porém, o PT tinha a responsabilidade de ajudar o país após o impeachment do Fernando Collor, visto que trabalhou ativamente pelo seu afastamento. Eu havia acabado de sair da prefeitura e tinha passado por uma experiência extraordinária. Eu estava capacitada a ajudar o meu país. Eu não estava fazendo uma opção entre uma coisa que era boa pro povo e outra que era ruim para o povo. Eu estava optando em usar minha experiência para ajudar a sociedade brasileira.

O PT não queria ir para o governo por conta de um cálculo eleitoral. O cálculo era de que o Itamar não faria um bom governo e Lula se tornaria presidente, o que não aconteceu.

Quando eu decido as coisas politicamente, eu decido junto com o partido. Se eventualmente, na minha avaliação, o partido está agindo de uma forma que não é a compreensão que eu tenho da política, eu saio. Eu fiz uma opção arriscada e paguei um preço, mas na política também se paga um preço pela coerência. Eu só não pago preço por ser incoerente. Eu posso até errar, não ser compreendida, mas ninguém pode dizer que eu estou sendo incoerente.

A solução para os dissidentes do PDT e do PSB seria deixar o partido?

Com certeza. Se supõe que você escolheu um partido com base nos seus valores, princípios e concepções. Quando eu me sinto desconfortável, eu saio. Eu fiquei 17 anos no PT e 18 anos no PSB. Saí quando passaram a ser contra minhas posições políticas e minhas convicções.

Não é o partido que deve mudar, eu é que devo mudar. No limite, sair do partido.

Durante a corrida eleitoral, muitos compararam Tabata Amaral a você. Ela, no entanto, votou a favor da reforma e você contra.  

‘Eu não conseguiria votar contra os trabalhadores, as pessoas de classe popular, as mulheres, os negros, os índios e os LGBTs’.

Talvez o que haja de comum é a nossa origem. Eu nem a conheço, mas pelo que fui informada, ela é uma pessoa de origem humilde, que se dedicou ao estudo, cresceu e estudou fora do país. Isso é louvável pois ela não foi sufocada pela sua origem de classe. Mas ao meu ver, ela não manteve sua consciência de origem de classe. Já no meu caso, tenho 84 anos e mantenho a mesma visão de política, de poder e de militância que eu tinha no começo da minha vida. Há uma condição fundamental de pessoas que nascem no meio pobre e humilde, quando criam consciência de classe. Assim são influenciados por essa combinação em todas as suas ações durante a vida. Isso aconteceu comigo. Mas existem pessoas que traem sua origem de classe. É uma contradição.

No caso da Tabata, digo que seria muito bom que a origem de classe dela se mantivesse no momento das decisões e opções políticas que têm impacto sobre os vários segmentos da sociedade. Eu não conseguiria nunca votar contra os trabalhadores, as pessoas de classe popular, as mulheres, os negros, os índios e os LGBTs.

Isto está na raiz do meu compromisso político. Eu fiz a opção pela política de forma tão radical que não constituí família, não tive filhos. Fiz desta forma pela força da minha origem, que é de uma família nordestina, que migrava na seca nas piores condições. Que viveu tudo aquilo que Graciliano Ramos relatou sobretudo em Vidas Secas. Minha origem de classe foi determinante para as minhas opções políticas, de vida e os espaços que eu ocupo na sociedade e no mundo.

Por que votar contra a reforma da previdência?

A reforma da previdência é um atentado aos direitos da população. Os principais atingidos são exatamente os mais pobres.

A previdência deve ser integrada à saúde e à assistência social, o que forma o sistema de seguridade social previsto na Constituição de 1988, que foi a que mais avançou do ponto de vista dos direitos sociais, humanos e individuais. Estão desmontando um marco legal gestado na época em que a sociedade estava fortemente mobilizada em razão do término da ditadura.

Esta reforma ignora a proteção social e só lida com a questão fiscal. Serão os pobres que irão pagar a economia de 800 bilhões de reais prevista pelo governo caso a reforma seja aprovada, enquanto os ricos serão beneficiados. A nova reforma da previdência mostra que não mudamos de governo, mas de regime. Não estamos em um regime democrático de direitos, mas um regime autoritário.

‘Não mudamos de governo, mas de regime. Não estamos em um regime democrático de direitos, mas um regime autoritário’ 

Quais são suas críticas exatamente?

Eu poderia destacar a capitalização e a diminuição do BPC, que são medidas que nós conseguimos retirar do projeto original, e a questão dos ruralistas, que mostra como esta reforma vem para beneficiar os mais ricos às custas dos mais pobres.

O modelo de capitalização proposto no texto inicial, sugeria que os trabalhadores deveriam fazer depósitos mensais em espécies de contas poupança, e que aquele valor e rendimento seria o destinado a sua aposentadoria. Este modelo se inspirou na previdência chilena, que está falida porque a população não atendeu às exigências desse sistema.

O BPC, que é pago para idosos que não conseguiram contribuir com a previdência, iria cair de um salário mínimo para R$400, menos da metade do valor. Como um idoso vive com isso? A medida não passou devido à resistência da oposição.

Enquanto isso, os ruralistas ficarão isentos da contribuição de 2,6% sobre sua produção, o que representaria 84 bilhões de economia em 10 anos para a previdência. Ao mesmo tempo que eles isentam os ricos, eles penalizam os mais pobres.

Mas a senhora concorda que há um déficit previdenciário e que algum tipo de reforma previdenciária é necessária?

A previdência deve levar em consideração a seguridade social como um todo, e não apenas a questão fiscal. Temos que lembrar que de acordo com a Constituição Federal, cabe ao Executivo suplementar recursos na Previdência. Há cinco anos não era suplementado e não havia um déficit como o atual. Isso começou a se aprofundar em 2014. No fundo o governo quer tirar recursos dos beneficiários da previdência para pagar os juros da dívida pública e atenuar a questão fiscal como um todo.

Qual sua avaliação sobre a performance dos partidos de esquerda na oposição ao governo? Se falou muito em derrota e desarticulação da esquerda.

‘Alguém que se diz de esquerda e com ideais socialistas deve se posicionar contra a reforma’

Nós atuamos unitariamente com algumas dissidências do PDT e do PSB na tentativa de barrar a reforma. O PDT está junto com os partidos de oposição desde o início. O PSB fechou questão, que implicaria que seus membros não poderiam votar diferente da orientação partidária.

Os dissidentes não alteravam o resultado da eleição, mas diminuiria a margem se todos tivessem votado de acordo com as orientações partidárias. Se tivéssemos maior unidade, mesmo como minoria, teríamos conseguido aprovar mais mudanças.

Pelo menos nessa experiência nós mostramos que é possível uma unidade dos partidos de esquerda na condição de oposição. O enfrentamento feito por nós nas comissões e no plenário foi determinante para diminuir os danos da reforma, então eu acho que a tendência  é haver maior unidade entre essas forças do campo progressista e democrático. Mas a oposição não deve ser feita apenas por nós, outros partidos podem fazê-la independentemente de serem do campo progressista.

É possível ser de esquerda e a favor da reforma?

Não. Absolutamente não. Direitos Humanos, direitos sociais e direitos de cidadania são inegociáveis. É contraditório. Alguém que se diz de esquerda e com ideais socialistas no sentido de justiça, solidariedade, igualdade de direitos e liberdade deve se posicionar contra a reforma. É isso que caracteriza um partido de esquerda. Ferir isso é não estar de acordo com o ideário de um partido que se diz socialista.

A senhora trabalhou durante muitos anos como assistente social. Você recebe algum tipo de aposentadoria? 

Eu era assistente social da prefeitura de São Paulo e recebo minha aposentadoria por lá, pelos meus 30 anos de trabalho. Eu não tenho aposentadoria como vereadora, nem como deputada e nem como prefeita. Quando terminar meu mandato não vou receber aposentadoria parlamentar pois defendo que devemos ter um tratamento senão igual, muito próximo ao dado ao trabalhador comum no mercado.

Qual o valor da sua aposentadoria?

Era 7 mil reais líquido. Agora a contribuição passou de 11% para 14%. Imagino que minha próxima aposentadoria será em torno de 6 mil reais.

O que você considera mais urgente para a sociedade brasileira e a questão da polarização? 

‘Quanto mais uma sociedade é politizada, organizada, participativa e crítica, menos projetos como Escola Sem Partido tomam forma’

A educação política. Durante a ditadura e no processo de redemocratização você tinha uma sociedade altamente mobilizada, com um nível maior de organização, participação e compreensão política. A partir de um certo momento não se reúne mais pra discutir política. Isso explica porque houve uma queda na qualidade dos representantes do povo.

Quanto mais uma sociedade é politizada, organizada, participativa e crítica, menos projetos como Escola Sem Partido tomam formaMenos propostas fundamentalistas que não geram pensamento crítico e desenvolvimento da lógica do pensamento são apresentadas. Precisamos de educação no sentido amplo do termo.

De Estadão