Bolsonaro reabre feridas da lei de anistia, que não puniu torturadores
Leia a coluna de João Chaves, advogado e colaborador do Blog da Cidadania.
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No último dia 29 de julho, o presidente Jair Bolsonaro desferiu um ataque covarde à memória do pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz. O advogado recebeu o apoio de diversas entidades e lideranças, inclusive da base governista. Agora, Bolsonaro será interpelado no Supremo Tribunal Federal para contar o que sabe sobre os crimes cometidos ao longo da ditadura militar. Onze ex-presidentes da OAB assinarão o pedido.
Entretanto, declarações desprezíveis como esta fizeram parte do repertório de Bolsonaro ao longo de toda a sua trajetória política. Em muitas ocasiões, ele desdenhou das torturas praticadas ao longo do regime militar e fez explícita apologia a notórios criminosos, como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Estes episódios remetem ao julgamento dos efeitos da lei 6.683/1979, a lei de Anistia. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal julgou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil, que tratava do tema e de sua aplicação aos criminosos militares envolvidos em torturas, sequestros e assassinatos por motivações políticas. A ação foi rejeitada pela Corte por sete votos a dois, impossibilitando a responsabilização de agentes estatais.
A mensagem transmitida à sociedade é de que os crimes cometidos no período militar são justificáveis e, até mesmo, desculpáveis. Dito isso, as declarações desprezíveis de Bolsonaro ganham a chancela estatal e reverberam atenuadas pela justificativa de que o embate durante a ditadura foi sórdido e com motivações espúrias de ambos os lados, em igual proporção.
Muito se argumentou que a resistência armada à ditadura militar também teria cometido crimes, tornando escusável a conduta dos militares. Trata-se, contudo, de um falso paralelismo. Fora da normalidade democrática, não é possível contar com a impessoalidade do poder público que, por sua vez, não detém a legitimidade sufragada pela vontade popular. O terrorismo de estado praticado ao longo dos “anos de chumbo” não era, portanto, capaz de assegurar garantias e liberdades mínimas aos cidadãos.
Em função disso, é direito de qualquer um a insurgência contra o aparato repressivo do estado, que atua em desacordo com a ordem democrática e com a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Conforme a lei brasileira, ninguém pode sonegar informações relevantes à elucidação de fatos criminosos, sob risco de ser considerado cúmplice. Contudo, se a Suprema Corte considerou anistiados os crimes praticados pelos militares, é presumível que Bolsonaro também estaria anistiado de eventual acusação de cumplicidade. Por outro lado, poderia ser responsabilizado por crimes contra a honra, por exemplo.
Jair Bolsonaro se beneficiou, em período eleitoral, do desconhecimento de grande parte da população acerca dos crimes praticados na ditadura, muito em função do salvo-conduto fornecido pelo Supremo Tribunal Federal. Ainda que tenha sido tratado como extremista, foi equiparado a outros candidatos sem o mesmo histórico de radicalismo. Nesse contexto, 42 milhões de brasileiros aptos a votar se omitiram no segundo turno das eleições de 2018, muitos dos quais ancorados na crença de que o apoio de um possível governo Haddad à soltura do ex-presidente Lula seria tão danosa ao país quanto os retrocessos prometidos por Bolsonaro nas áreas de educação, direitos humanos, saúde, segurança, meio ambiente, diplomacia e na autonomia das instituições republicanas.
Outros países, que enfrentaram processos semelhantes de transição democrática, puniram os envolvidos em crimes contra a humanidade mencionados no Estatuto de Roma. É o exemplo de Chile, Argentina e Uruguai. Sebastian Piñera e Mauricio Macri, aliados do mandatário brasileiro, sofrem grande desgaste em seus países pelo apoio de Bolsonaro à tortura e aos regimes autoritários ocorridos na região.