Chefe da Anvisa denuncia interferência política do governo
A proposta da Agência Nacional de Vigilância Sanitária ([/CPS/18711220]Anvisa) de regulamentar o cultivo da cannabis para pesquisa e produção de medicamentos colocou o órgão em conflito com alguns dos membros do alto escalão do governo de Jair Bolsonaro (PSL) e entidades médicas do país.
Os ataques mais duros vieram do ministro da Cidadania, Osmar Terra(MDB), que, em entrevista ao site Jota, acusou o diretor-presidente da Anvisa, William Dib , de ser “pró-droga” e disse que, se as regras forem aprovadas, a Anvisa “pode até acabar”.
No início do mês, Bolsonaro falou a jornalistas que cabe a Terra tratar do assunto. “Ele diz que isso abre as portas para o plantio de maconha em casa”, afirmou o presidente, um entendimento que a Anvisa diz não ser amparado pelas regras em debate, que preveem o plantio apenas por pessoas jurídicas.
O ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, defendeu a mesma posição, ao dizer à Folha de S. Paulo ser contra a liberação por ver nela uma forma de legalizar o uso recreativo da maconha.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABM) também se manifestaram neste sentido, ao questionar a eficácia de medicamentos à base de cannabis e dizer que a regulação do plantio pode “causar forte impacto na sociedade em sua luta contra o narcotráfico e suas consequências”.
O presidente da Anvisa diz à BBC News Brasil que “a sensação que dá é que as pessoas não leram o projeto”. “Queremos discutir ciência e medicamentos à base de cannabis. Misturar isso com o efeito deletério das drogas é misturar assuntos divergentes.”
Quanto à acusação de ser a favor das drogas, Dib diz ser um equívoco de Terra. “Nunca tinha ouvido esse tipo de coisa. Acho que ele me conhece muito pouco. Nunca dei nenhum tipo de declaração a favor das drogas.”
O presidente da Anvisa afirma não haver problemas se Bolsonaro e seus ministros discordam da proposta e se manifestam contra, mas afirma que seu papel “não é polemizar com o governo, muito menos com o ministro Osmar Terra”.
“Não vamos ficar atacando pessoas nem dizendo o que são ou deixam de ser por um projeto baseado em pesquisas cientificas”, diz Dib. “Cada um faz o que acha melhor, só não pode deturpar o que estamos fazendo.”
Apoio da ‘maioria esmagadora’
A Anvisa autoriza o uso terapêutico de canabidiol (CBD), um dos principais componentes da maconha, desde janeiro de 2015.
A substância era proibida, mas, à medida que pesquisas demonstravam efeitos positivos para certas doenças e pacientes recorriam à Justiça para que a agência permitisse o acesso a ela, a Anvisa passou a autorizar a importação de produtos com canabidiol e que laboratórios aprofundem estudos sobre o tema.
Desde então, mais de 78 mil unidades de produtos à base da planta – óleos, cápsulas e outros – foram importados. Cada paciente precisa pedir a liberação para uso próprio à Anvisa. Hoje, mais de 4,6 mil pessoas têm autorização.
Atualmente, há no Brasil um medicamento à base de cannabis registrado, o Mevatyl, composto por CBD e tetra-hidrocanabinol (THC), o princípio psicoativo da maconha, e indicado para espasmos musculares em quem tem esclerose múltipla. Ele é fabricado por uma empresa do Reino Unido.
Mas o plantio da cannabis continua proibido no Brasil, mesmo para estes fins. A agência começou a estudar uma mudança há cinco anos e elaborou dois conjuntos de regras que estão desde junho sob consulta pública, que termina na próxima segunda-feira, 19 de agosto.
As normas em discussão preveem que somente pessoas jurídicas receberiam autorização para o plantio e também estabelecem restrições e exigências para cultivar, manipular, transportar, armazenar e distribuir a produção, com controles de segurança em cada etapa do processo.
A venda e a entrega das plantas poderiam ser feitas apenas para institutos de pesquisa e fabricantes de insumos farmacêuticos e medicamentos. Tudo seria supervisionado pela Polícia Federal, e o cidadão comum não poderia ter pés de maconha em casa.
Em 31 de julho, foi feita uma audiência pública sobre o tema. Dib afirma que também está sendo realizada uma pesquisa para saber a posição de órgãos governamentais e não governamentais sobre o assunto.
O presidente da Anvisa diz a “maioria esmagadora” das contribuições até agora foi de apoio à medida. “A sociedade aceitou o diagnóstico que está carente de acesso a produtos medicinais a base de cannabis. Também há uma adesão forte porque elaboramos uma proposta consistente, com aprendizados de países como Canadá, Portugal, Israel e Estados Unidos, e que atende às necessidades da academia, do mercado e da população”, afirma Dib.
Uma vez encerrada a consulta pública, em 19 de agosto, todas as sugestões e modificações no texto serão consolidadas em um texto final, que será votado pelos diretores da agência. Se aprovada, a regulamentação do cultivo controlado de cannabis para uso medicinal e científico entrará em vigor imediatamente.
O natural é que isso ocorra, porque a diretoria da Anvisa “está comprometida” com a regulamentação do plantio da cannabis, segundo fontes ligadas à agência, como indica a aprovação unânime por sua diretoria das regras elaboradas pela área técnica para que fossem levadas à consulta pública.
Uma rejeição após cumprir todo este processo é, de acordo com essas fontes, algo que “nunca aconteceu” na história recente da agência, que é ligada ao Ministério da Saúde e responsável por regular e fiscalizar empresas, produtos e serviços de saúde no país. A Anvisa tem autonomia para tomar essa decisão, mesmo diante da contrariedade do governo.
No entanto, a Casa Civil disse por meio de sua assessoria de imprensa que “está totalmente descartada qualquer hipótese de cultivo no Brasil”. “O governo defende a importação de insumos para a fabricação de medicamentos”, disse a pasta em nota.
Por sua vez, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta (DEM), afirmou à Folha de S. Paulo não ver problemas na proposta da Anvisa “se for com base científica para uso científico”.
Bolsonaro indicará próximos diretores da Anvisa
Bolsonaro disse que a Anvisa tem “superpoderes” e que ele “não tem poder de interferir” na agência, à qual caberia a decisão sobre o plantio da maconha para pesquisas e medicamentos. Mas a realidade é um pouco diferente.
As regras anteriores determinavam que os diretores da agência têm um mandato de três anos, prorrogáveis por mais três. A nova lei de agências altera isso para um mandato único de cinco anos.
Bolsonaro já nomeou um dos seus membros, o contra-almirante Antonio Barra, que é médico, para o posto que estava vago na diretoria da agência. “Tenho a condição de colocá-lo imediatamente como presidente da Anvisa”, disse o presidente no início de agosto.
Barra dará na deliberação final da Anvisa sobre o tema um dos cinco votos sobre o tema. A decisão será tomada por maioria simples.
Os mandatos de outros três diretores atuais acabam em dezembro. Um deles está em seu segundo mandato e não poderia ser reconduzido ao posto. Bolsonaro indicará seu substituto.
Outros dois estão no primeiro mandato e, teoricamente, poderiam permanecer – este é o caso de seu atual presidente -, mas, caso não tenham a chancela presidencial, serão trocados.
A quarta vaga se abrirá em março do próximo ano, quando o segundo mandato do atual ocupante do cargo se encerra. Assim, Bolsonaro poderá formar uma diretoria da agência totalmente indicada por ele.
‘A Anvisa precisa enfrentar a questão’
Até lá, caso os diretores atuais aprovem as regras sobre maconha medicinal, Terra já disse que isso pode ser questionado na Justiça e ameaçou fechar a agência. “A Anvisa está enfrentando o governo. Não tem sentido”, disse.
O ministro voltou a tratar do tema, em entrevista à Folha de S. Paulo, quando suavizou a ameaça – “não tenho poder de acabar com nada” -, mas não amenizou a pressão e disse que o governo vai discutir com a agência para ela “acabar com essa proposta”.
“A Anvisa tem que se preocupar em produzir e analisar medicamentos que fazem bem à saúde da população e não que piorem. O que a Anvisa está fazendo é o primeiro passo para legalizar a maconha no Brasil”, disse o ministro.
Também questionou a competência da agência para tratar da questão. “Essa é uma ação regulada pelo Congresso, e em alguns poucos lugares pelo Judiciário. Nunca uma agência se dispôs a liberar a produção de maconha. É a primeira vez no mundo isso que a Anvisa está tentando fazer”, afirma.
O presidente da Anvisa diz que a fala do ministro “não tem cabimento”. “Como hoje pacientes conseguem importar produtos à base de cannabis se nenhuma agência do mundo permite? Da forma que falam, parece que é uma jabuticaba brasileira, mas o que estamos fazendo já existe em vários países.”
Ele afirma ainda que a Anvisa age amparada pela lei 11.343/06, que prevê que a União pode autorizar o cultivo de plantas “para fins medicinais e científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização”, e pelo decreto 5.912/06, que atribui a competência ao Ministério da Saúde, ao qual a agência é vinculada.
“Estamos cumprindo o papel que o Congresso nos delegou. A Anvisa precisa sair da mesmice e enfrentar a questão”, afirma Dib.
‘Ministro age com motivações ideológicas’, diz presidente da Anvisa
Terra defende como alternativa a produção sintética do CBD para fabricar medicamentos sem THC. “Acharia ótimo”, diz Dib, “e nossa proposta contempla os sintéticos, que terão as mesmas facilidades, mas ainda não existe um produto assim considerado eficaz para todas as patologias.”
Dib afirma ainda que o ministro age baseado em “motivações ideológicas e não científicas”. O Ministério da Cidadania disse à BBC News Brasil que não se manifestaria sobre o assunto.
“Ele [Terra] disse que uma criança teria usado o remédio à base de cannabis e teve alucinação. Isso não tem pé nem cabeça. Em 4 mil anos de literatura sobre isso, não existe registro de efeitos nocivos com uso oral de substâncias obtidas a partir da planta, que é o que propomos”, afirma Dib.
Entretanto, o CFM e a ABP são contra a regulamentação por falta de evidências científicas “de que o uso da cannabis in natura e de seus derivados garantam efetividade e segurança para os pacientes”.
“Até o momento, somente o canabidiol, um dos derivados da Cannabis sativa L., por ter mínimos estudos em forma de pesquisa, tem autorização para uso compassivo sob prescrição médica no tratamento de epilepsias em crianças e adolescentes refratários aos métodos convencionais. Isso está previsto na Resolução CFM nº 2.113/2014, que, por sua vez, proíbe aos médicos a prescrição da Cannabis in natura para uso medicinal, bem como de quaisquer outros derivados que não o canabidiol”, diz a nota das duas entidades.
O presidente da Anvisa afirma que o comunicado são “manifestações manipuladas”. “Não digo nem equivocadas, que é uma palavra bonitinha. O CFM e a ABP fazem parte do conjunto liderado pelo ministro Osmar Terra, que é contra o uso medicinal da cannabis”, afirma.
O CFM e a ABP não responderam ao pedido de entrevista da BBC News Brasil até a publicação desta reportagem.Dib aponta que a própria classe médica pediu para usar estes medicamentos, o que levou a agência a ser processada para permitir sua importação, e argumenta que, se o CFM – uma autarquia que fiscaliza e normatiza a prática médica no país – é contra a liberação do uso destes medicamentos, pode proibir médicos de os receitarem.
“Nenhum laboratório vai produzir se a classe médica não prescrever. Se não houvesse pressão dos médicos, não estaríamos regulando.”
‘Desrespeito’ e ‘irresponsabilidade’
O farmacêutico Dirceu Barbano, que fez parte da diretoria da Anvisa por seis anos e foi seu presidente entre 2011 e 2014, diz que a postura do governo é uma forma de exercer pressão sobre a agência e uma “manifestação de desrespeito explícita”.
“Dizer que a Anvisa pode acabar é uma ameaça descabida. É uma tentativa de colocar uma espada no pescoço dos seus funcionários ao falar que se decidirem de tal forma eles podem ficar desempregados na semana seguinte. Isso é muito perigoso. Agências reguladoras não foram criadas para ficar de plantão para atender as necessidades ou vontades políticas de um governo”, afirma.
Barbano considera as declarações do ministro Osmar Terra uma “irresponsabilidade” e diz que há evidências cada vez mais “robustas” de que os produtos feitos a partir da cannabis são seguros e úteis no tratamento de determinadas doenças.
“O ministro é médico e sabe muito bem que existem elementos concretos do uso terapêutico dessa planta. Vamos ficar com medo de cultivar no Brasil por achar que não conseguimos controlar essa produção? Visitei empresas no Canadá que mostram que é possível fazer isso cumprindo requisitos de segurança”, diz ele.
O farmacêutico afirma ainda que, se estudos com medicamentos feitos com canabidiol sintético demonstrarem que eles são tão seguros e eficazes quanto os feitos com insumos naturais, a indústria farmacêutica pode adotar esse método de produção.
Mas defende que, enquanto isso, o cultivo da cannabis para a fabricação a partir da planta não deve ser proibido e cita como exemplo a morfina, um potente medicamento analgésico descoberto no início do século 19 a partir da papoula, a mesma planta que levou à criação de drogas como ópio e heroína.
“Se alguém pensasse desta forma no passado, talvez pacientes com câncer não teriam hoje a morfina. O ministro mistura algo que faz parte da sua história política – ele sempre militou no combate às drogas e assistência a usuários, o que é ótimo -, mas não acho prudente usar o respeito que conquistou nesta área para fazer afirmações que servem aos seus propósitos políticos.”
De Época