Löwy: “Governo Bolsonaro é o que mais tem traços neofascistas”
Há mais de 40 anos, o paulistano Michael Löwy vive na França. Foi em solo europeu que consagrou-se como um dos intelectuais marxistas mais conhecidos e respeitados no mundo. Ao longo das décadas, Löwy, hoje aos 81 anos, tornou-se uma referência nos debates da esquerda não apenas brasileira, como também latino-americana.
Na virada para a primeira década dos anos 2000, um novo tema passou a figurar atrelado ao seu nome. O sociólogo tornou-se mundialmente conhecido pelos estudos da perspectiva ecossocialista, defendendo a urgência do debate ecológico pelo campo marxista.
Michael Löwy atendeu a reportagem do Brasil de Fato para falar sobre o novo lançamento da Editora Expressão Popular, o livro Notícias de Lugar Nenhum. A introdução da obra é assinada por ele.
Durante a conversa, o pensador marxista também se propôs a analisar temas do cenário político-social brasileiro e global.
O avanço da extrema direita no Brasil, as semelhanças com os governos fascistas europeus no século 20, o desmonte da política ambiental no governo de Jair Bolsonaro e a resistência política foram alguns dos temas elucidados por Löwy. Frente a um cenário classificado por ele como “ressurgimento de formas neofascistas ou semifascistas”, o sociólogo afirma que a esperança está na juventude.
Confira os melhores momentos da entrevista:
Brasil de Fato: Para começar, gostaria de entender em quais termos e como o senhor caracteriza o governo de Jair Bolsonaro no Brasil.
Michael Löwy: O que a gente está vivendo no Brasil, atualmente, é uma distopia. O contrário da utopia. Para nós, que somos da esquerda brasileira e lutamos durante tanto tempo para avançar nas ideias, lutas e conquistas dos trabalhadores, do socialismo e do progresso, realmente é triste ver como o Brasil chegou ao ponto de ter um governo que eu caracterizaria, pelo menos, como semifascista.
Não chega a ser inteiramente fascista porque faltam os aspectos do Estado totalitário, dos bandos armados, como os “fascio” de [Benito] Mussolini. Mas realmente há muitos aspectos do fascismo. Acho que Jair Bolsonaro é muito comparável, por exemplo, com Mussolini dos anos 1920. Nestes anos, Mussolini ainda mantinha certas aparências de uma república parlamentar, havia até oposição no parlamento, da qual o principal chefe era um democrata, o [Giacomo] Matteotti, e entre os deputados estava Antonio Gramsci. Tudo isso durou até 1926, quando ele fecha o parlamento, prende Gramsci, que fica na prisão até sua morte (1937), e manda assassinar Matteotti. Aí foi o fim. Espero que não cheguemos a isso aqui no Brasil.
Vejo a figura de Jair Bolsonaro e de boa parte de seu governo com traços fascistas de autoritarismo, com essa ideia de que precisamos “exterminar” o inimigo. O inimigo sendo a esquerda, as feministas, os indígenas, o MST, etc. Esse ódio ao “comunismo”, que para ele é toda a esquerda, é uma característica do fascismo — assim como a ideia de que a única solução é a repressão.
Temos muitos governos de extrema direita no mundo hoje em dia, infelizmente, como [Donald] Trump, nos Estados Unidos, [Viktor] Orbán, na Hungria, [Narendra] Modi, na Índia. Mas o que tem mais traços semifascistas, ou neofascistas, é o de Jair Bolsonaro.
Felizmente, ele não tem poder total. Contrariamente aos Estados totalitários, como foram os italiano, alemão e franquista [na Espanha], ele não tem o poder total. Tem que negociar com o Parlamento, com o Senado e mesmo com as forças armadas. Essa é uma situação que ainda o diferencia do fascismo clássico dos anos 1930. A história obviamente não se repete, mas é muito preocupante.
Outra diferença com o fascismo é que esse personagem foi eleito democraticamente pela população. Não foi um golpe militar, como tivemos tantos na América Latina nos anos 1960 e 1970; foi uma eleição democrática, e isso é muito triste.
Por outro lado, a gente vê que as pessoas que caíram nessa vigarice estão acordando. A popularidade de Bolsonaro caiu muitíssimo, já há mobilizações e resistência. Uma delas, e para mim muito importante, é a mobilização sindical contra a reforma da Previdência, uma reforma ultrarreacionária.
Obviamente, as classes dominantes estão gostando. Há um consenso entre as oligarquias, os proprietários de terra, os latifundiários e os banqueiros que acham que Bolsonaro é uma saída porque ele está construindo um programa neoliberal, da maneira mais brutal, como a oligarquia dominante brasileira há muito tempo gostaria de realizar.
Outra resistência que acho muito importante é a dos indígenas da Amazônia, que estão lutando para defender as florestas e os rios. A Floresta Amazônica é um bem do povo brasileiro e da humanidade. Sem ela, a mudança climática vai se acelerar.
No governo de Bolsonaro, parece que as políticas socioambientais perderam a importância. Desde que ele assumiu, a liberação de agrotóxicos acontece em um ritmo acelerado e houve um salto de quase 90% no desmatamento da Amazônia, por exemplo. Mesmo o campo progressista demorou para entender a importância desta pauta. Como o senhor vê esse tema hoje?
Estou convencido de que a questão do ambiente, ou da natureza, ou ecológica, se tornará cada vez mais central no século 21. Não é só uma questão de defender o meio ambiente, nossas florestas ou as espécies animais. É uma questão de sobrevivência da vida no planeta. Se o processo de mudança climática e aquecimento global superar certo nível de elevação, se tornará irreversível.
A partir de certo momento, cabe a pergunta de se ainda há condições para a vida humana neste planeta. É uma questão realmente de vida ou morte. Por isso, vai se tornar a questão política central para qualquer projeto de mudança social. É muito importante que a esquerda, os movimentos sociais, os operários, os camponeses, todos eles, tomem a questão ambiental e ecológica como uma questão política fundamental e uma razão central para lutar contra o capitalismo. É o capitalismo o responsável por isso.
É muito importante que os socialistas compreendam isso e assumam esse combate como uma coisa central, e não como um detalhe em uma lista de 45 pontos do programa. É uma batalha central para o futuro da humanidade. Esse é o meu “recadinho”: nós precisamos nos apropriar da questão ecológica como uma arma na luta contra o capitalismo.
O que há de comum entre o avanço da direita na Europa e na América Latina?
A globalização liberal e a crise econômica, que ela provocou a partir de 2008, criaram um contexto que foi favorável a esse ascenso espetacular não só da direita clássica neoliberal, mas também da extrema direita semifascista, com rasgos racistas, autoritários em muitos países do mundo. Isso vai do Japão à Índia, boa parte da Europa, Estados Unidos e Brasil.
Não tenho uma explicação do porquê isso está acontecendo. Tenho vários elementos: a crise do neoliberalismo é um aspecto, o enfraquecimento da esquerda é outro. Mas, para mim, ainda é um enigma o porquê de, justamente nesses últimos anos, a gente estar assistindo a esse fenômeno, que não é exatamente a volta dos anos 1930, porque a história nunca se repete, mas é o ressurgimento de formas neofascistas ou semifascistas.
Sobre esperança, para finalizar. O senhor vê alguma saída? Qual seria?
A saída para mim são as lutas e a resistência. Aqui na América Latina, em primeira linha, estão os indígenas e os camponeses. Outro elemento que nos dá esperança é a juventude. A juventude que, no mundo inteiro, está se mobilizando em 20 de setembro para uma grande greve geral internacional sobre a questão da mudança climática, contra os governos que não estão tomando nenhuma providência.
Sabemos que a juventude é o futuro. Se a juventude está se mobilizando, está lutando, tomando consciência e levantando a parada de ordem “Mudemos o sistema e não o clima”, então existe esperança.