Polícia de Doria é a mais violenta desde 2003
Na noite de 17 de junho, Paula* perdeu o único irmão, morto por policiais militares em Guarulhos, na Grande São Paulo, naquele tipo de ocorrência que o governo classifica como “morte decorrente de intervenção policial”, mas que as famílias dos mortos preferem chamar simplesmente de assassinato.
O irmão de Paula e outros três amigos foram mortos por policiais da Rota, a tropa mais letal da PM paulista. Os policiais afirmam que Vitor Nascimento Barboza Alves, 21 anos, Ronei Oliveira de Souza, 20 anos, Nicolas Vieira Canda, 19 anos, e Leonardo Rocha de Carvalho, 23 anos, estavam em um carro que “apresentava envolvimento anterior em crimes e vinha sendo monitorado pela PM”. Segundo seus relatos, houve perseguição e o motorista atirou contra eles, que revidaram e atingiram os jovens. Os PMs não explicam quais crimes nem as provas que liguem o carro a ilegalidades.
Os quatro agora fazem parte das estatísticas. Embora o governo paulista esteja se vangloriando de ter alcançado “a menor taxa de homicídios da história”, o número de pessoas mortas pela polícia aumentou com a chegada de João Doria ao poder. Matando em média duas pessoas por dia, o braço armado comandado pelo governador tucano está por trás de uma a cada três mortes violentas cometidas no estado de São Paulo.
Era promessa de campanha. Até a eleição, o tucano fazia questão de se associar à imagem do então candidato à presidência Jair Bolsonaro, dizendo que a polícia mandaria “os criminosos para o cemitério”. Agora, ainda que ele prefira se afastar do personagem Bolsodoria, os números mostram que ele seguiu à risca a cartilha bolsonarista.
Não é um caso isolado no Brasil hoje, claro: no Rio de Janeiro, comandado por Wilson Witzel, do PSC, as ações da polícia deixaram 881 mortos no primeiro semestre (o equivalente a 5 mortos por 100.000 habitantes), mais do que o dobro dos 426 assassinados pelo braço armado de São Paulo no mesmo período (1 morto pela polícia a cada 100.000). No entanto, mesmo com uma população quase três vezes menor do que a paulista, o Rio de Janeiro registra o dobro de homicídios em relação a São Paulo, que tem registrado sucessivas melhoras nos números. Ou seja: em São Paulo, os índices de homicídios, roubos e policiais assassinados têm caído, mas isso não aconteceu com as mortes cometidas pela polícia.
Com os criminosos matando menos e o estado matando mais, a participação de policiais no total de assassinatos cometidos em São Paulo deu um salto. Das 1.392 mortes intencionais praticadas no primeiro semestre deste ano, a ação de policiais, tanto no serviço como no horário de folga, foi responsável por 426 mortes, o equivalente a 31% do total. Quatro anos antes, no primeiro semestre de 2015, a letalidade policial tirou a vida de 415 pessoas (21%) em um universo de 1.933 mortos. O número foge totalmente aos padrões dos países democráticos. Estudos realizados nos EUA, por exemplo, apontam que as mortes nas mãos da polícia correspondem a apenas 3,6% do total de homicídios registrados em todo o país.
Matando mais e morrendo menos
Desde 2014, durante a gestão do tucano Geraldo Alckmin, a participação da letalidade policial no total de assassinatos em São Paulo vem aumentando regularmente, a um ritmo de 9% ao ano. Levando em conta as mortes cometidas por todos os policiais, inclusive no horário de folga, o número tem se mantido alto: foram 426 no primeiro semestre deste ano, um aumento de 3% em relação aos 415 mortos no mesmo período do ano passado.
Mas, ao se analisar só os assassinatos cometidos por policiais em serviço – dado que permite comparar uma série histórica maior –, a letalidade policial dos primeiros seis meses do governo João Doria, com 367 mortes, é a maior dos últimos 16 anos. Antes disso, o número mais alto havia sido registrado no primeiro semestre de 2003: 419 mortes.
Além disso, a polícia que agora está matando mais também está morrendo menos. As mortes de policiais em serviço sofreram uma forte queda desde a virada do século: neste primeiro semestre foram nove, um terço dos 27 mortos do ano 2000. O número fortalece a suspeita de que as estatísticas oficiais estejam ocultando práticas sistemáticas de mortes ilegais praticadas pelo estado – e não confrontos.
“Os índices de letalidade são altíssimos, colocam a PM de São Paulo como uma das que mais matam no mundo”, nos disse o tenente-coronel aposentado da PM Adilson Paes de Souza, mestre em direitos humanos e autor do livro “O guardião da cidade – Reflexões sobre casos de violência praticados por policiais militares”. Para ele, a redução no número de policiais mortos em serviço é uma boa notícia, mas não pode ser comemorada se não vier acompanhada de uma redução da letalidade policial. “Existe uma confirmação objetiva de que a polícia é abusiva.”
Para a cientista social Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o FBSP, o fato de o índice de homicídios estar caindo e a letalidade policial ficar no mesmo patamar pode indicar abusos por parte das forças do estado, como a prática sistemática de execuções. “Não há dúvidas de que, sob qualquer critério de mensuração do uso da força policial, a polícia tem produzido muitas mortes”, explica.
Prêmio para mandar ‘criminosos para o cemitério’
Uma vez eleito, Doria nunca deixou de estimular a violência policial. No primeiro mês de governo, ele vetou um projeto de lei de um colega de partido, o deputado estadual Carlos Bezerra Júnior, que previa a criação, em São Paulo, de um Mecanismo Estadual de Prevenção e Enfrentamento à Tortura em São Paulo – o projeto de lei, que seguia a regulamentação do Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, era uma ferramenta para coibir abusos do estado.
Em 8 de abril, o tucano voltou a usar seu bordão de campanha ao premiar um grupo de policiais militares que, quatro dias antes, haviam matado 11 suspeitos de assalto a banco em Guararema, na terceira ação mais mortal da história da PM paulista. “A polícia agiu corretamente e mandou para o cemitério 11 bandidos”, declarou, mesmo que naquela altura os inquéritos policiais ainda estivessem em andamento e não houvessem concluído se as mortes ocorreram dentro da lei.
A chancela do governador impacta na ação da polícia nas ruas. “Quando o policial na ponta vê que o comandante máximo está pedindo que haja o confronto, ele vai achar que ele está autorizado a isso”, diz Rafael Alcadipani, professor da FGV, a Fundação Getúlio Vargas, e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Um dos raros momentos em que o governo paulista deu sinais claros de que gostaria de ver a polícia matando menos foi em 2013, no início da gestão do secretário de segurança pública Fernando Grella Vieira, durante o terceiro mandato do governo de Geraldo Alckmin. Na ocasião, o secretário baixou uma resolução impedindo a polícia de socorrer baleados — o motivo não declarado da medida era evitar que PMs matassem os feridos a caminho do hospital ou que fizessem o “resgate” de suspeitos já mortos apenas para atrapalhar o trabalho da perícia, prática comum.
Naquele ano, as mortes por policiais em serviço caíram 38,5%, em relação a 2012, enquanto a morte no horário de folga aumentou 111%, segundo dados compilados pelo FBSP. “Na época, a letalidade em serviço despencou, mas a polícia foi matar fora [do horário de serviço]”, resume Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP, para quem “a polícia não necessariamente produz menos mortes, mas migra suas práticas”. Hoje, o fato de a polícia estar matando mais nos seus horários de trabalho pode indicar que se sente respaldada pelo governo a usar a violência de um jeito mais oficial.
‘A opção pelo confronto é do criminoso’
Em sua resposta ao Intercept e à Ponte, a Secretaria da Segurança Pública afirmou, por meio de nota, que a “opção pelo confronto é sempre do criminoso”. Segundo o governo, a maior parte das mortes cometidas pela polícia “acontece nos casos em que policiais atuam para impedir roubos, onde os criminosos estão armados, subjugando e colocando a vida de pessoas em risco”.
A justificativa, contudo, não explica como os supostos confrontos “para impedir roubos” podem ter provocado mais mortes se, no mesmo período, os roubos também caíram no estado. No primeiro semestre deste ano, a polícia registrou 150.152 roubos, o número mais baixo desde 2009.
Os policiais responsáveis pelas mortes de Vitor, Rolnei, Nicolas e Leonardo afirmaram no boletim de ocorrência que o carro onde os jovens estavam “apresentava envolvimento anterior em crimes e vinha sendo monitorado pela PM”, sem explicar que crimes seriam esses. Ainda segundo a versão oficial, houve perseguição e os jovens, que estariam armados, morreram em confronto com a polícia. Mas as famílias dos mortos apresentaram evidências que contradizem a versão policial, como um áudio enviado por Ronei contando que estava sendo preso e a geolocalização do celular de um dos jovens mostrando que estava num local diferente do mencionado na versão policial. O caso ainda está sendo investigado pelo Setor de Homicídios e Proteção à Pessoa de Guarulhos e pela Corregedoria da Polícia Militar.
Paula, hoje, tem medo da polícia. Esse nem mesmo é seu nome real: a pedido dela, inventamos uma identidade fictícia para protegê-la. É que, depois que os familiares dos quatro jovens confrontaram a versão dos policiais, eles dizem ter passado a receber mensagens ameaçadoras nos celulares e a serem alvos de “enquadros” constantes por policiais nas ruas.
A Secretaria da Segurança Pública afirma que “as polícias Civil e Militar estão à disposição das famílias para registrar a denúncia” sobre as ameaças recebidas pela família – mas Paula, hoje, não confia na instituição. Além da revolta pela imagem de criminoso associada injustamente a memória de seu irmão, ela convive com o medo das ameaças. “Hoje, quando vejo um policial, a sensação que eu tenho é de nojo, de ódio. Não vejo eles mais como pessoas de bem, e sim uns monstros.”