Um ano após incêndio, pesquisadores do Museu Nacional resistem
No último ano, uma pergunta rondou os funcionários do Museu Nacional, no Rio de Janeiro: se pegou fogo em tudo, ainda há o que fazer? A resposta, no começo esfumaçada pelo luto, foi se tornando cada vez mais clara.
“Aprendemos que a máquina não pode parar”, diz a historiadora Regina Dantas. “Sabe aquela história de ‘ninguém solta a mão de ninguém’? Foi cada um fazendo a sua parte e, quando vimos, estava todo o mundo trabalhando junto.”
Aulas, pesquisas e orientações continuam na rotina dos cerca de 90 professores e técnicos da instituição, dos quais em torno de dez agora dividem o tempo com as buscas pelo acervo perdido nos escombros —e outros até em campo.
O que não significa que as lágrimas já podem ser contidas quando lembram daquela noite de domingo, em 2 de setembro de 2018, ou dos objetos insubstituíveis que foram consumidos pelo fogo.
Também não esconde as dificuldades de se trabalhar em laboratórios emprestados de outras áreas, muitas vezes com falta de verba e material adequado.
Mesmo assim, o clima é de otimismo diante da recuperação de tantas peças —até junho, haviam sido contabilizados 5.000 achados, entre fragmentos de itens e objetos do dia a dia, ainda sem análise do quanto isso representa do acervo.
Abaixo, a Folha conta a história de três dessas pesquisadoras, que dizem ter transformado o desespero em luta no ano que passou e sonham com o dia em que o Museu Nacional será reaberto.
Cresceu entre os besouros de seu pai, hoje professor emérito (aposentado com destaque) da instituição, e “ouvindo o barulho da máquina de escrever”. Seguiu os mesmos passos, concluiu mestrado, doutorado e pós-doutorado e, por 16 anos, trabalhou com ele em um laboratório no terceiro andar do edifício, que caiu no incêndio.
Agora, ela divide espaço com os colegas de vertebrados (de ornitologia, que estuda aves), em um prédio a alguns metros do museu.
“Tínhamos uma das maiores coleções de entomologia [insetos] do Brasil, grande parte coletada pelo meu pai. Tinha centenas ou milhares de espécies ainda sem nome, a serem estudadas”, diz, depois de uma pausa para esperar o choro passar.
A coleção está entre as mais afetadas. Uma das poucas coisas que sobraram de dentro do museu foram pequenas mantas de algodão com insetos secos, que subiram com as labaredas e “voaram” até bairros vizinhos. Uma delas foi achada na Tijuca, a mais de um quilômetro.
“Não é possível recompor a coleção, que é insubstituível, mas é possível reconstruir uma nova”, projeta Marcela. É isso que ela vem tentando fazer no último ano junto a outros professores e alunos. Já coletaram novas amostras em biomas como Amazônia, cerrado e mata atlântica e recebem doações.
O laboratório que ela coordena estuda especialmente os coleópteros (besouros, joaninhas etc.). Na manhã da entrevista à reportagem, Marcela estava a poucos dias de receber um outro grupo de crianças para mostrar como se faz as armadilhas para pegá-los na mata.
‘PALÁCIO AGORA MOSTRA UMA NOVA HISTÓRIA PARA A GENTE’
Para a historiadora Regina Dantas, 56, que passou boa parte da vida acadêmica estudando o palácio, agora existe uma nova história a ser contada. “O incêndio está me mostrando marcas do Dom João, imperador que quase nem cito na minha dissertação sobre o cotidiano na casa. Agora estamos vendo um outro palácio.”
Ela se refere, por exemplo, a camadas de tinta nas paredes que eram invisíveis antes da tragédia. Com o fogo, essas novas informações emergiram e já começam a ser observadas por pesquisadores de arquitetura.
“Nos projetos de TCC e mestrado dos alunos, vamos continuar estudando o que já existiu, sem ignorar o incêndio. E contar uma nova história, que é o que o palácio está mostrando para a gente.”
Regina mudou suas aulas de biblioteconomia e história das ciências (na graduação e na pós) para a Quinta da Boa Vista, para ficar mais perto do museu. Antes elas eram ministradas em outras unidades da UFRJ (federal responsável pelo museu).
Em fevereiro, se voluntariou para entrar também no time de resgate. Contava a história dos “caquinhos” que retirava dos escombros para os operários, que passaram meses fazendo o escoramento do prédio. E ela tem uma para cada objeto: o relógio de sol de Dom Pedro 2º, mobílias do oriente árabe, um vaso que o imperador ganhou da França como agradecimento por um acervo etnográfico (de povos e culturas).
“Trabalho com tudo que não existe mais, e é difícil conseguir objetos da família real”, diz. “Queremos mostrar que temos interesse em doações, quem sabe de Portugal, Petrópolis, Juiz de Fora.”
Além dos estudos e aulas, ela diz que os pesquisadores ganharam uma nova e importante função.
“Passamos a ser motivadores dos alunos, que em muitos casos pensaram em desistir. A pesquisa não acabou, ou se fortaleceu ou tomou um novo rumo.”
‘NÃO ARREDO DAQUI, VOU FICAR ATÉ O ÚLTIMO CAQUINHO’
Com 67 anos de idade e 45 trabalhando no Museu Nacional, a arqueóloga Angela Buarque já poderia se aposentar. Mas quem disse que ela quer?
“Não arredo daqui, vou ficar até o último caquinho”, assegura ela.
A longa experiência em escavações e um conhecimento profundo da reserva técnica de arqueologia da instituição —pela qual ela era responsável havia anos— a fizeram ser chamada três dias depois do incêndio para integrar a equipe de resgate do acervo no palácio.
Há um ano, a arqueóloga tem se dedicado diariamente a achar, higienizar e organizar as peças.
Primeiro no que chama de “escavação horizontal”, em armários carbonizados, e mais recentemente com as “pazinhas”, em um trabalho minucioso de separar o que é entulho do que é material arqueológico.
Angela estima que falta retirar cerca de 30% do que existia na sua área.
“Muita coisa se salvou, eu diria que 15% das peças de cada coleção estão inteiras, entre cerâmicas e bronzes. Mas muitas perderam coloração, se deformaram, partiram”, conta ela.
A reserva técnica ficava concentrada em duas salas no térreo, nos fundos do palácio, por isso teve menos tempo de contato com o calor. Já as coleções expostas não tiveram a mesma sorte.
“Ali acho que não tenho peças inteiras”, lamenta ela, que calcula mais uns cinco anos até que se defina precisamente o que existia antes do fogo e o que sobreviveu a ele.
A paixão de Angela pelo acervo do Museu Nacional se acendeu no início da década de 2000, quando ela participou de mudanças justamente para evitar a propagação de incêndios, como o armazenamento das peças em armários de aço.
O carinho se traduz até em conversas com as peças: “Que bom que você se safou”, costuma dizer a arqueóloga quando acha algo.
Da FSP.