Bolsonaro esvazia conselho de proteção a direitos da criança
Por meio de um decreto, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) retirou todos os membros da sociedade civil que fazem parte atualmente do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) e fez mudanças que, na prática, diminuem o poder do órgão de tomar decisões e emitir posicionamentos sobre o tema. As mudanças foram publicadas nesta quinta-feira (5) no Diário Oficial da União.
Criado em 1991, o Conanda tem como função fiscalizar ações e elaborar normas e diretrizes para assegurar a proteção dos direitos da criança e do adolescente no país.
Reportagem da Folha mostrou que o conselho, um dos poucos que sobreviveu ao decreto que extinguiu órgãos de participação social, já vinha sendo inviabilizado sob a gestão do atual Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, pasta à qual é vinculado.
Os problemas começaram no início do ano, e se agravaram nos últimos meses. Em maio, o ministério suspendeu o pagamento de passagens e diárias para que conselheiros, que não recebem remuneração pelo cargo, pudessem participar das assembleias.
Em agosto, entidades chegaram a custear os valores por conta própria para poder tomar decisões, mas a ausência de integrantes do governo evitou que o quórum fosse atingido.
Na última semana, a pasta também exonerou a secretária-executiva do Conanda sem que a decisão fosse submetida ao órgão. Prevista para ser realizada em outubro, a conferência nacional dos direitos da criança também foi cancelada.
Agora, o decreto publicado nesta quinta traz novas mudanças que, na prática, diminuem o poder do conselho, previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Entre as medidas, o decreto dispensa todos os membros atuais do conselho e determina nova regras para escolha dos integrantes da sociedade civil. Antes definido por eleição em assembleia, a escolha agora ocorrerá por meio de processo seletivo.
O texto também diminui o número de integrantes do grupo, que passa de 28 a 18. Destes, nove serão de ministérios do governo e nove de entidades que atuam na área da infância. Antes, essa divisão era de 14 a 14.
O número de reuniões também diminui. Em vez de encontros mensais, o novo decreto prevê encontros a cada três meses. Também estabelece que participantes que moram fora do Distrito Federal, e que antes participavam de forma presencial, participem por videoconferência.
Para Antônio Lacerda Souto, que ocupava o cargo de vice-presidente do Conanda, as medidas visam retirar o poder da participação da sociedade. “É o que o governo quer: desmontar os conselhos e não deixar que funcionem”, afirma ele, que prevê impactos já neste ano para as políticas de defesa da criança, como a falta de aplicação dos recursos do Fundo Nacional da Criança e do Adolescente.
Composto por doações do imposto de renda, o fundo tem seu valor direcionado por meio de decisões do conselho. De R$ 12 milhões previstos, nenhum valor foi aplicado neste ano. “Até criar a nova estrutura, irá demorar. Isso significa que até o final do ano o conselho não poderá fazer nada, e o dinheiro do fundo não será usado. É o mesmo que dizem que criança e adolescente não tem prioridade absoluta”, diz ele, que avalia ir à Justiça para que o governo reveja a decisão.
Para Thaís Dantas, advogada do Alana, ONG que atua na área da infância, o monitoramento de ações como o combate à violência e trabalho infantil será prejudicado. “A pauta da infância é constante e urgente. Não há como esperar três meses para deliberar esses temas”, afirma ela, que também questiona a retirada dos integrantes.
“Isso viola toda a lógica de participação social e o direito das instituições eleitas, que tinham esse direito adquirido”, completa. Questionado sobre o decreto, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos ainda não respondeu.
Em nota divulgada após a publicação de reportagem da Folha, a pasta nega sucateamento do conselho e disse que adotou “todas as medidas cabíveis para dar continuidade ao funcionamento do órgão colegiado”.
Diz ainda que a suspensão de passagens e diárias “representa a preocupação em utilizar o dinheiro público em ações efetivas e que gerem reais transformações nas vidas das crianças e adolescentes do país”.
Sobre as críticas de atraso na marcação de reuniões e ausência nas assembleias, o ministério informa apenas que “diversas atividades foram realizadas de março a agosto deste ano”.
DIVERGÊNCIAS
Para participantes, no entanto, as ações podem estar relacionadas a divergências políticas. Em abril, o grupo se posicionou contra a proposta do governo de regular o ensino domiciliar, o que gerou incômodo no ministério. O embate se manteve nos meses seguintes.
A defesa de membros de criar um grupo de trabalho para discutir questões LGBT, como o combate à violência e o respeito à identidade de gênero, também não foi bem aceita pela pasta.
Em outra medida, o ministério enviou um pedido ao conselho para que flexibilizasse uma resolução de 2004 que passou a considerar a publicidade infantil como abusiva. Nos últimos anos, a norma do conselho tem sido avaliada um dos marcos na proteção à criança.