Comissão de Anistia manda negar em massa as solicitações
Único representante dos anistiados na Comissão de Anistia, órgão responsável por analisar os pedidos de reparação de perseguidos pela ditadura, o advogado Vitor Neiva afirma que há “cinismo” no colegiado e que o órgão está orientado a negar em massa as solicitações.
Neiva também acusa o ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado por Damares Alves, de lançar mão de uma manobra jurídica para tentar removê-lo da Comissão de Anistia.
A pasta baixou no início de setembro uma norma que proíbe que os conselheiros da Comissão advoguem na Justiça em processos que envolvem anistiados, sob o argumento de que isso configura conflito de interesse.
O ministério estabeleceu que os conselheiros ou abram mão das ações judiciais nas quais advogam ou deixem a Comissão de Anistia, uma manobra que entidades que representam os anistiados dizem ser direcionada para atingir o advogado.
Neiva afirma que, ao ser indicado como conselheiro da Comissão de Anistia, renunciou aos casos em que representava anistiados no próprio colegiado. Mas ele atua há cerca 20 anos advogando em processos sobre a anistia na Justiça.
“Eu estou dando trabalho para eles, contra um objetivo que existe lá de revisionismo histórico. E isso motivou a tentativa de me tirar do órgão”, afirmou o advogado em entrevista à Folha.
“Não há espaço para convencimento racional na Comissão de Anistia, que está voltada para a visão do indeferimento [dos pedidos]. Quando a jurisprudência é contrária aos anistiados, eles a citam para indeferir. Quando ela é favorável aos anistiados, eles esquecem a jurisprudência e indeferem mesmo assim. Isso não é direito, é cinismo em juridiquês”, reclama Neiva.
Formada por 27 conselheiros, a Comissão de Anistia elabora pareceres de caráter consultivo. Cabe à ministra Damares decidir se defere ou indefere as solicitações de reparação econômica.
Segundo dados do ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em 2019 a Comissão de Anistia analisou 80 processos. Destes, Damares negou 74 pedidos e deferiu parcialmente seis.
As entidades de representação dos anistiados podem designar um representante para a Comissão de Anistia. Os demais nomes são escolhidos pelo governo.
Desde que assumiu o ministério, Damares tem prometido rever reparações dadas nos últimos anos e abrir o que chamou de “caixinhas” da comissão.
Ela indicou como presidente do colegiado o advogado João Henrique Nascimento de Freitas, ex-assessor do então deputado estadual Flávio Bolsonaro.
Freitas foi responsável por ajuizar, em 2010, uma ação na Justiça Federal do Rio contra o pagamento de indenização a camponeses reconhecidos como vítimas de tortura durante as operações do Exército para acabar com a Guerrilha do Araguaia.
O atual presidente da Comissão da Anistia também entrou com ação contra o reconhecimento do guerrilheiro e militar Carlos Lamarca (1937-1971) como anistiado.
“Ele entra com uma ação para anular as anistias dos guerrilheiros do Araguaia, mas se sente na condição de julgar esses casos. Aí não tem conflito de interesse nenhum e no meu caso tem?”, protesta Neiva.
O advogado afirma ainda que a Comissão de Anistia tem recusado requerimentos utilizando o argumento de que não há provas para a concessão do benefício, mesmo em casos em que há material probatório.
“Uma vez a assessoria [da comissão] me mandou um caso com um parecer pré-pronto que dizia não ter prova. O requerente havia dito que tinha sido anistiado pelo estado, mas a assessoria dizia que isso não constava dos autos. Aí eu fui ver e tinha a cópia inteira do processo. Até quando tem provas, eles negam que ela exista. E vai passando o rolo compressor”, argumenta.
Neiva diz que, embora seja minoria no colegiado, sua atuação incomoda o ministério porque ele apresenta um “contraponto” à opinião manifestada pela cúpula da comissão.
“A gente fez um planejamento estratégico, considerando o que é possível fazer quando se é o único em um colegiado hostil. Você pode a rigor denunciar as ilegalidades. Quando um julgamento que deixa de ser unânime, é possível estabelecer um contraponto. Dá para atuar para que processos que são mal instruídos e que estão sendo sufocados sejam, no mínimo, melhor instruídos”, conclui.
Procurado, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos nega que o objetivo da norma sobre conflito de interesse seja alijar o representante dos anistiados do órgão.
“Desde a nomeação dos conselheiros, o presidente da Comissão de Anistia e demais integrantes se preocupam com o respeito aos princípios constitucionais da legalidade, da moralidade e, ainda, da impessoalidade”, disse a pasta.
O ministério também defende que a atuação passada do presidente da comissão em casos sobre a anistia não configura conflito de interesse.
“O ajuizamento de ações populares pelo atual presidente visava submeter ao Judiciário a legalidade dos atos administrativos proferidos pela Comissão de Anistia à época. A ação popular envolvendo os atos administrativos que beneficiavam camponeses do Araguaia buscava, exclusivamente, a proteção do erário público, de forma que fosse evitada sua dilapidação por meio de decisões que não continham, a priori, os requisitos exigíveis para sua concessão”, afirma a pasta.
Da FSP