Ignorância de Doria faz alunos ficarem sem material em SP
A decisão do governador João Doria (PSDB) de mandar recolher um material didático por causa de uma suposta “apologia à ideologia de gênero” privou os alunos da rede estadual de São Paulo de temas como equação de primeiro grau, figuras de linguagem e revoltas no Brasil colonial.
Isso porque apostila confiscada tinha, além das três páginas que desagradaram ao governador, outras 141, com conteúdo de oito disciplinas: arte, ciências naturais, educação física, geografia, história, inglês, matemática e português.
Sem aviso prévio, a decisão de pegar de volta o material obrigou professores a repensarem às pressas o planejamento de aulas e deixou alunos assustados, relataram educadores à Folha.
Segundo eles, muitas das crianças, em regra com 13 e 14 anos de idade, não haviam recebido até esta quarta-feira (4) nenhuma explicação sobre por que tiveram que entregar o material didático.
O “erro inaceitável” que o governador disse ter visto na apostila para o 8º ano do ensino fundamental estava na parte de ciências, em texto sobre orientação sexual e identidade de gênero. Em rede social, Doria escreveu que o conteúdo era uma “apologia à ideologia de gênero”.
A expressão, que não é reconhecida no meio acadêmico, é normalmente usada por grupos conservadores contrários às discussões sobre diversidade sexual. A apostila não menciona “ideologia de gênero”.
Nesta quarta, o Ministério Público de São Paulo instaurou inquérito para apurar o caso. Na portaria, o Grupo de Atuação Especial de Educação afirma, entre outros pontos, que, segundo a Constituição, são objetivos da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
A Promotoria pede que sejam informados os valores pagos para edição, impressão, distribuição e armazenamento dos exemplares. O deputado estadual Carlos Giannazi havia pedido ao órgão na terça-feira que tomasse alguma medida para reverter a ordem do governador.
Professor de inglês em uma escola estadual de Sorocaba, Douglas Nascimento conta que professores não entenderam nada quando inspetoras passaram nas salas de aulas, pediram para os alunos as apostilas e as jogaram em sacos de lixo.
“Parecia coisa de filme. Só fomos entender quando pegamos o celular e vimos a cópia de um comunicado da diretoria de ensino, que mandava colocar o material ‘em caixas ou sacos pretos [de lixo]’”, conta.
“Pelo clima, parecia que estavam pegando o ‘Mein Kampf’ [livro escrito por Adolf Hitler]”, lembra outro professor do interior do estado, que pediu para não ser identificado por medo de represálias.
Educador da área de ciências, ele conta que já tinha pedido a parte das suas turmas um trabalho baseado na apostila, e agora terá que rever o planejamento, perdendo uma semana de trabalho.
A apostila reproduz conteúdo produzido pelo Ministério da Saúde, que diz: “A identidade de gênero refere-se a algo que não é dado e, sim, construído por cada indivíduo a partir dos elementos fornecidos por sua cultura: o fato de alguém se sentir masculino e/ou feminino. Isso quer dizer que não há um elo imediato e inescapável entre os cromossomos, o órgão genital, o aparelho reprodutor, os hormônios, enfim o corpo biológico em sua totalidade, e o sentimento que a pessoa possui de ser homem ou mulher”.
Outro trecho afirma: “Nesse sentido, podemos dizer que ninguém ‘nasce homem ou mulher’, mas que
nos tornamos o que somos ao longo da vida, em razão da constante interação com o meio social.”
Em nota na terça (3), a Secretaria da Educação afirmou que o material tinha “conteúdo impróprio para a respectiva idade e série e em desarranjo com as diretrizes desta gestão”.
Isso porque, segundo a pasta, o tema “identidade de gênero” estaria em desacordo com a Base Nacional Comum Curricular.
A base, porém, prevê que, no 8º ano, o aluno consiga “selecionar argumentos que evidenciem as múltiplas dimensões da sexualidade humana (biológica, sociocultural, afetiva e ética)”.
OUTRO LADO
Em nota, a Secretaria da Educação afirma que, mesmo sem as apostilas, o acesso dos estudantes da rede estadual a materiais didáticos está mantido, uma vez que todos eles têm os exemplares do Programa Nacional do Livro Didático, que abrangem as oito matérias que estavam na publicação recolhida.
“Além disso, o conteúdo das apostilas do SP Faz Escola, complementar ao trabalho do professor, continua disponível digitalmente, com exceção do material em apuração. Portanto, não há prejuízo aos estudantes por falta de material”, afirma a pasta.
A secretaria diz que “respeita a diversidade da experiência humana” e das opiniões na sociedade, mas que a forma como o conceito de identidade de gênero foi tratado “revela uma abordagem ideológica do assunto, quando afirma que ‘ninguém nasce homem nem mulher'”.
A afirmação consta de texto de apoio adaptado do Ministério da Saúde.
Questionada pela Folha pelo segundo dia consecutivo, a secretaria não respondeu quanto custou a impressão da apostila.
Da FSP