“Não podemos mais aceitar calados”, diz Felipe Neto
Aqueles que não estavam desconectados do mundo nos últimos dias já devem ter ciência da encrenca em torno da última Bienal do Livro, no Rio de Janeiro. Começou na última sexta-feira (6), quando Marcelo Crivella, prefeito do Rio que tende a aparecer tão-somente para tratar de assuntos que não cabem a prefeitos (em vez de falar do caos na saúde pública, ou de vias abandonadas, se presta a fiscalizar o amor alheio), manifestou-se contra o conteúdo de uma HQ. A revista em quadrinhos, de teor completamente apropriado a jovens, exibia em suas páginas o beijo de dois personagens. A indignação de Crivella se devia ao fato de que o ato de afeto se deu entre dois super-heróis do sexo masculino, Wiccano e Hulkling. Mas o político não parou aí. Ele logo convocou autoridades para invadir a Bienal e tentar confiscar a HQ – e, em efeito contínuo, queria fazer o mesmo com quaisquer obras de temática LGBTQ+.
Existe uma palavra para definir a ação de Crivella: censura. O prefeito agiu como um candidato a inquisidor. Os frequentadores da Bienal se revoltaram. No entanto, uma figura, que tem despontado como voz popular de oposição à extrema direita brasileira (que abrange de Crivella a Jair Bolsonaro), reagiu com força. “Afeto não pode ser proibido para menores”. “Censura em último nível. É baixo. É covarde”. “Nós temos o controle do país. A população determina o futuro da nação. Nós unidos somos muito mais fortes do que qualquer repressão que eles possam implementar”. No YouTube e no Twitter, manifestou-se Felipe Neto.
O youtuber, influenciador da juventude (e, hoje em dia, também de cabeças mais maduras), não se bastou nas palavras. Logo tomou ação propositiva: anunciou a compra de 14 mil exemplares de livros de conteúdo LGBTQ+ na Bienal, com distribuição gratuita marcada para sábado. Logo seu ato de resistência à censura tomou as manchetes.
No dia seguinte, houve a distribuição, que levou entre 6 e 7 horas para esgotar os exemplares – um por pessoa (logo, é certo afirmar que em torno de 14 mil fizeram fila para ter a sua cópia). Todas as obras vinham embrulhadas e com o provocativo aviso: “Este livro é impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas. Felipe Neto agradece sua luta pelo amor, pela inclusão e pela diversidade”.
Outra, digamos assim, crítica que surgiu foi a do “lugar de fala”. Alguns chegaram a dizer que não seria sua praia esse ativismo por você não ser gay. Por que, como heterossexual, se sentiu tocado pelo problema e resolveu agir? Há um poema que diz: “Primeiro levaram os negros, mas não me importei com isso, eu não era negro. Em seguida levaram alguns operários, mas não me importei com isso, eu também não era operário. Depois prenderam os miseráveis, mas não me importei com isso, porque eu não sou miserável. Depois agarraram uns desempregados, mas como tenho meu emprego, também não me importei. Agora estão me levando, mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo”.
Hoje se vê uma série de vozes populares, antes dissonantes, mas que agora se unem em oposição a medidas de Bolsonaro, Witzel, Crivella. Foram contra (e um compartilhou no Twitter o que o outro disse sobre) a censura na Bienal: você, Reinaldo Azevedo, Gregório Duvivier, Antonio Tabet, Felipe Castanhari. Nomes que antes não costumavam se dar tão bem entre si. Quais novos tempos são estes? É assustador que o país esteja sendo dividido entre pessoas que têm alguma mínima capacidade cognitiva, e pessoas que não têm, nenhuma. As palavras são duras, mas basta olhar ao redor para enxergar que representam a verdade. O governo atual e seus defensores são um descalabro, uma vergonha histórica. O guru do governo (Olavo de Carvalho) é um homem que diz que a Terra é plana, o Sol gira em torno do nosso planeta, cigarro não faz mal e que os Beatles eram analfabetos musicais. O mascote do governo (Luciano Hang) é um sujeito que se julga patriota, mas tem como símbolo de suas empresas a Estátua da Liberdade, e passa literalmente o dia inteiro no Twitter ofendendo opositores e tentando se exibir. Para todo lado que você olhe, só se enxerga vergonha.
Com ações como a da Bienal, quais são seus objetivos concretos? Explico-me: pressionar para a não reeleição de Crivella, por exemplo? Ou a ideia é conscientizar a população, de forma mais geral? Como espera que o movimento que deu início repercuta com o tempo – como quando for lembrado durante períodos de eleições? A ideia é lutar contra o autoritarismo, a opressão e a censura. É lutar contra a burrice, contra a tragédia ambiental, contra a destruição da imagem internacional do nosso país. É lutar pela sobrevivência, pelo futuro, pelos filhos que ainda vou ter. Essa é a luta, e ela não tem partido.
Antigamente, um líder da juventude necessariamente tinha de ir às ruas para movimentar multidões. Seja em Woodstock, ou nas Diretas Já. Você mobilizou todos com tuítes e um vídeo no YouTube. A internet ajuda as pessoas a se unir? Sem a menor sombra de dúvidas. Justamente por isso que o governo (federal) atual tem tantas operações suspeitas na internet e o PSL está lutando com todas as forças para não aprovarem a lei do combate às fake news. Quando forem feitas as devidas investigações sobre o uso de robôs, de WhatsApp e de redes sociais para o massacre de reputações e a criação de notícias falsas, muita gente poderosa vai cair.
Mas será que a internet também tem ajudado a dar voz aos preconceituosos, racistas, misóginos, aos inquisidores? Afinal, foi também no Twitter que o Crivella começou a se manifestar sobre a Bienal. E é pela internet que se posicionam terraplanistas, homofóbicos… A internet é o espaço mais democrático do mundo, pois dá voz a todos. Isso significa dar voz também a pessoas negacionistas, obscurantistas e anticiência, como Olavo de Carvalho e seu séquito.
Formariam então Twitter, YouTube e afins, hoje o campo mais importante das batalhas ideológicas e políticas? Neste exato momento, não tenho dúvidas de que sim. Por isso mesmo é tão importante que comece uma investigação pesada sobre o uso de robôs e fake news nesses sites e apps.
Com tudo isso, persiste uma pergunta: você teria algum objetivo político? Quer se tornar deputado, ministro, senador… Neste momento, não tenho, em absoluto, interesse político. Qualquer que seja.
De VEJA