“Personagens da política são de comédia”, diz Juca
O teatro nasceu da religiosidade: o primeiro ator foi Téspis, um sacerdote. O que leva as pessoas ao templo é ouvir o discurso do sacerdote, que é uma reflexão sobre sua vida pessoal e sua relação com a comunidade. Você sai da oração achando que está melhor do que pensava. E o teatro tem exatamente a mesma função, por isso seu caráter mágico.
Tenho uma gratidão enorme a um dos maiores escritores da história, que é Shakespeare. Tive o privilégio de fazer quatro tragédias shakespearianas. “Júlio César” em 1966, “Ricardo 3º” em 1975, “Otelo” em 1982 e “Rei Lear” em 2014.
A mais importante, sem dúvida nenhuma, foi “Júlio César”, que me marcou muito por um número infinito de razões. E provavelmente estimulou que eu começasse a escrever.
Foi uma montagem muito conturbada, dirigida pelo grande Antunes Filho, marcada por conflitos de bastidores. Mal conseguíamos ensaiar. A peça é sobre uma luta política, e foi uma luta para fazê-la.
Na história, o imperador Júlio César está comemorando a vitória numa grande batalha e, de repente, os conspiradores Brutus e Cássio resolvem derrubá-lo. E como seria possível derrubar Júlio César? Só através de um assassinato. Cássio consegue convencer Brutus e os outros generais, que vão à praça pública com os demais conjurados e assassinam o grande chefe.
A personagem que eu fazia era o Marco Antônio. Ele recita o discurso mais importante da literatura mundial: o discurso da tragédia de Júlio César. Eu ainda o tenho todo de cor.
Marco Antônio era ligado a Júlio César, fã e aliado dele. Após sua morte, ele pede licença para dizer algumas palavras ao cadáver. Brutus concede, desde que ele não fale absolutamente nada contra os revolucionários da hora. Ele faz um discurso brilhante, sem falar mal de ninguém. E acaba levando todo aquele povo, que aceitava a subida de Brutus e Cássio, a se voltar contra os revolucionários. Parte-se para a luta e os dois conspiradores se suicidam.
Algo interessante de observar é que os antagonistas de César se matam. Assim, eles se colocam quase
na lista dos heróis trágicos —os que preferem a morte a viver sem honra. Quando eles escolhem o suicídio, salvam-se eticamente. Aqui, você está no clima da tragédia.
Agora vamos apanhar o “Édipo Rei”, de Sófocles. Nela, o Oráculo convoca Édipo para dizer-lhe sobre uma tragédia que estava fazendo morrer doentes os habitantes de Atenas: tudo porque um homem havia matado o pai e se casado com a própria mãe. Édipo fica enlouquecido e sai para interromper imediatamente a maldição da Grécia.
Começa a pesquisar incansavelmente, mas à medida que vai avançando, os detalhes o vão aproximando dele mesmo —que, sem saber, se casou com a mãe. Mas ele não cessa em nenhum momento a investigação, pelo contrário, acelera conforme se aproxima da sua própria culpa —o que caracteriza o herói trágico. Ele vai às últimas consequências e prefere morrer a viver sem honra.
A comédia é exatamente o oposto.
Certa vez eu fiz um comentário sobre o Brasil, em uma época na qual vários membros do governo foram apanhados em enorme corrupção e estavam acabando com a administração pública.
O presidente partiu para investigar quem eram essas pessoas, puni-las e botá-las na cadeia. À medida que aprofundou sua investigação, percebeu que as pessoas eram ligadas a ele, membros do seu partido. E qual a atitude desse chefe de Estado? Esquecer o fato, apagar a investigação e deixar tudo por isso mesmo. Essa é uma personagem de comédia.
Quando tive essa descoberta, notei que esse é o problema da política: a falta de integridade daqueles que se locupletam do avanço no poder e, quando apanhados, conseguem de alguma forma embaralhar a história, recorrer ao Supremo Tribunal Federal, apagar tudo.
Aqueles que tinham culpa passam a ser, às vezes, vistos como heróis. A personagem defeituosa leva à comédia. A personagem íntegra, à tragédia. Isso tudo eu aprendi com “Júlio César” e “Édipo Rei” —e a maioria das personagens brasileiras são de comédia.
Nas minhas peças eu escrevo sobre o que me apaixona e o que me indigna. E o que mais me indigna é a falta de caráter do ser humano, um elemento básico para o conflito teatral. Não se escapa do vilão, um membro que suscita o riso e não a lágrima.
Enquanto a lágrima pega sua paixão, o riso suscita sua inteligência e sua reflexão. Sempre que você assiste a uma tragédia, sai do teatro muito emocionado. Mas quando assiste a uma comédia que trata desses temas, sai de algum modo melhor como ser humano. Você assistiu à mecânica nefasta da política e saiu consciente —tocou seu raciocínio, não seu coração.
Então se revela a função absolutamente genial do teatro, que é a de melhorar o homem. Torná-lo mais afetivo, generoso, solidário. Eu escrevo não exatamente com esse objetivo, mas mergulhado nessa proposta.
De FSP