O horror dos abusos nas escolas militarizadas do AM
Foto: Jhonny Lima
“Mas o que é isso, Filipe? É a escola cívico-militar.” Em mais uma demonstração de seus dotes teatrais e publicitários, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, participou de um jogral com o deputado federal Filipe Barros, do PSL do Paraná. Pretendia promover o mais recente projeto do governo e uma das promessas de campanha de Jair Bolsonaro. “Filipe”, diz Weintraub no vídeo, “você acredita que teve estado que não quis?” Como uma espécie de Laurel da dupla O Gordo e o Magro, o parlamentar comenta: “O governador não pensa no seu povo”. Até agora, 16 unidades da federação, mais o Distrito Federal, “pensaram no seu povo” e demonstraram interesse no programa, que basicamente pagará o salário de militares para colocar “ordem” e eliminar a balbúrdia nas escolas. Em entrevista, o ministro discorreu sobre as maravilhas do modelo: “Eu digo que conheci como funciona e, toda vez que visito uma escola, fico encantado com o que vejo. A gente imagina que é uma coisa rígida, severa, dura. Pelo contrário, as crianças têm um sentimento de coleguismo, amizade. É muito fraternal”.
Provavelmente, Weintraub não visitou as escolas administradas pela Polícia Militar no Amazonas. Até outubro, registram-se 120 denúncias de abusos morais e sexuais, além de violências físicas praticadas pelos militares que trabalham nas unidades contra professores, estudantes e familiares. A apuração das reclamações e a punição dos envolvidos sucumbem ao silêncio imposto pelo corporativismo, como de praxe nos inquéritos policial-militares. Os casos acumulam-se ao menos desde 2015 e só foram encaminhados ao Ministério Público estadual no início do mês, depois de o deputado Fausto Júnior, do PV, convocar uma audiência pública na Assembleia Legislativa e expor a situação das vítimas.
Cerca de 80 mães registraram acusações contra os gestores e muitas alegam sofrer pressões para retirar as queixas. As violações aconteceram nos nove colégios da PM em Manaus, afirma Ricardo Gomes, advogado das Associações de Pais, Mestres e Comunitários. O Colégio Militar da Polícia Militar 1, na Zona Sul da capital, tornou-se, porém, o caso mais extremo.
Entre os abusos cometidos na unidade, consta a denúncia de Anderson Pimentel Rodrigues, professor de Português, agredido no colégio pelo tenente-coronel Augusto Cezar Paulo de Andrade, diretor do CMPM 1. Segundo Rodrigues, o militar deu-lhe um tapa no rosto quando se negou a assinar um livro de ocorrências que o acusava de três infrações. Não só. Em um vídeo postado nas redes sociais, é possível ver o momento em que o docente é encurralado por três militares no pátio e levado para o interior de uma sala.
“Lá, eu sofri tortura física e psicológica. Fui empurrado, tive arma apontada para a minha cabeça e fui chamado de ‘professor de merda’”, relatou a CartaCapital. Rodrigues registrou um boletim de ocorrência por lesão corporal. O laudo do exame de corpo de delito produzido pelo Instituto Médico Legal comprovou “lesões compatíveis com as produzidas por instrumento ou meio contundente”. O professor tirou uma licença médica por 30 dias, a contar do episódio ocorrido em 27 de agosto. “Emagreci 10 quilos, desenvolvi síndrome do pânico, sofro de insônia. Estamos mexendo com o alto escalão da polícia, é impossível não ter medo.”
Duas professoras do mesmo colégio declaram ter sido vítimas de assédio sexual praticado por um militar que integra o corpo docente. Segundo uma delas, o oficial propôs um encontro sexual em troca da revisão de uma nota baixa dada à filha da docente que estuda no CMPM 1. Em outra denúncia, um PM é acusado de apontar uma arma para um aluno autista de forma a convencê-lo a sair da sala. Dez militares, lista o advogado da associação, são citados em variadas denúncias. Até o momento, tem-se conhecimento do afastamento de um coronel da PM que atuava na direção do CMPM VIII, no bairro Compensa, na Zona Oeste de Manaus. Familiares de alunos tiveram acesso a mensagens de WhatsApp em que o PM oferece dinheiro a alunas para participarem de um ménage. Em nota, o comando da PM informa ter afastado o coronel em março para avaliar sua conduta. Uma sindicância interna iniciada em setembro investiga as denúncias de abusos em todas as escolas.
Para Gomes, é preciso uma regulamentação clara que defina os papéis da Polícia Militar e das Secretarias de Educação nas escolas militarizadas. Além dos dez colégios militares, o Amazonas possui outros 20 que adotam um modelo semelhante ao proposto pelo projeto cívico-militar do governo federal. Na última adesão, o estado destacou outras duas escolas estaduais para integrar a experiência piloto. O Ministério da Educação prevê até 2023 instalar 216 unidades do tipo.
Um PM amazonense ouvido sob anonimato por CartaCapital diz que impera nas escolas a “cultura do medo”. As unidades, descreve, tornaram-se locais de jogos de poder internos da corporação, com favorecimentos movidos a interesses particulares e abordagens que em nada se preocupam com o papel pedagógico dos colégios. “Esses militares precisam entender que não estão em um quartel ou em uma operação civil, mas em uma escola.”
Segundo Gomes, as nomeações dos militares não podem ser condicionadas apenas à decisão do alto escalão das polícias, como hoje, mas chanceladas por avaliações psicológicas e vocacionais. A cobrança é no mínimo justa, considerado o rendimento mensal médio dos militares, superior a 50% do piso salarial dos professores. Recentemente, o Ministério da Educação declarou que o valor anual de 1 milhão de reais por escola será destinado exclusivamente ao pagamento dos oficiais.
A conta foi feita com base em uma escola de mil alunos e 18 militares atuantes – um Oficial de Gestão Escolar (oficial superior), um oficial de Gestão Educacional (oficial subalterno/intermediário) e 16 monitores (1º sargento ou suboficial ou subtenente). Em resumo, o piloto de Weintraub em nada melhora a infraestrutura e não prevê investimentos em inovação, na adoção de modelos modernos de ensino ou na transformação do ambiente escolar. O projeto, no fundo, não passa de uma forma de criar outra sinecura para os militares, de quem Bolsonaro depende cada vez mais para continuar firme no Palácio do Planalto.