Privataria: Bolsonaro quer destruir parques, reservas e patrimônio histórico

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Jair Bolsonaro está colocando em marcha um plano imenso para transformar áreas públicas, praias, cachoeiras, lagoas e zonas de preservação ambiental em empreendimentos turísticos privados. Tive acesso a documentos internos do Ministério do Turismo que mostram como isso está se desenvolvendo de maneira acelerada no governo de Bolsonaro — um entusiasta da criação de “Cancúns” brasileiras.

Um dos documentos é uma planilha produzida no primeiro semestre deste ano que lista 222 propriedades da União espalhadas por 17 estados e Distrito Federal, que o governo quer passar para a iniciativa privada explorar. São indicações feitas pelos governos estaduais a pedido do governo federal. Há desde prédios históricos e terrenos em locais privilegiados a parques nacionais e ilhas. Até mesmo um parque no Pantanal está entre os alvos do governo — com 135 mil hectares, quase o tamanho da cidade de São Paulo, o Parque do Pantanal Matogrossense hoje não tem infraestrutura turística alguma.

A lista será consideravelmente maior. Os outros 9 estados, entre eles São Paulo, ainda não haviam respondido ao pedido do Ministério do Turismo por áreas da União em seus territórios que seriam de interesse turístico para uma eventual concessão à iniciativa privada.

Claro que essas áreas não serão todas concedidas ao mesmo tempo, e haverá modelos diferentes de concessão e destinação. Mas o projeto, que o governo deverá anunciar ainda neste ano, segue as bases de um programa iniciado há três anos pelo governo de Portugal.

O Revive, como será chamado também no Brasil, concede construções históricas sem uso e/ou em estado deteriorado para empresas privadas, com vistas ao turismo. Isso não envolve simplesmente um trabalho de restauração. Somente neste ano, nove patrimônios históricos portugueses foram colocados à disposição, entre conventos, mosteiros e até um castelo. Todos eles irão virar hotéis, com 50 anos de concessão à empresa vencedora da licitação (há um concurso para cada local). Neste momento, o governo português está recebendo propostas de grupos hoteleiros e outros interessados em transformar o Mosteiro de Travanca, em Amarante, uma joia beneditina colocada de pé quatro séculos antes de Pedro Álvares Cabral chegar ao Brasil.

A presença hoteleira no programa é gritante, embora não conste da propaganda pública do governo português a informação de que o Revive é, na prática, um esforço de fortalecimento da rede de leitos no país. Não houve ainda nenhum caso bem-sucedido de licitação de imóvel do governo português para outra finalidade que não a transformação em hotel (embora em alguns casos, como mosteiros, as capelas sejam mantidas para a visitação pública).

Um dos herdeiros do grupo Pestana, o maior representante da indústria hoteleira de Portugal, preside a estatal portuguesa Instituto Turismo de Portugal, responsável pela execução do programa Revive, desde a seleção das áreas até os procedimentos de definição das empresas que irão obter a concessão para exploração comercial dessas áreas. Luís Inácio Garcia Pestana Araújo, 49 anos, não é um mero herdeiro. Ele já foi responsável pelo avanço do grupo Pestana na América do Sul e pelo desenvolvimento de novos projetos no continente. Até 2005, foi ainda vice-presidente do grupo no continente, chefiando as operações do Pestana no Brasil.

TURISMO PARA PORTUGUÊS VER
O governo brasileiro já conheceu o programa de perto. Em junho, quatro funcionários do Ministério do Turismo passaram uma semana em Portugal visitando o Revive. O mais bem ranqueado nessa comitiva foi o assessor especial do ministro Marcelo Álvaro Antônio, Mateus von Rondon Martins – menos de um mês depois ele foi preso temporariamente suspeito de envolvimento no esquema das candidaturas laranjas do PSL em Minas Gerais.

A implantação do Revive no Brasil virou prioridade no Ministério do Turismo. Depois de reuniões internas, mais de duas semanas depois do retorno da comitiva, Marcelo Álvaro Antônio mandou um ofício para Babington dos Santos, secretário de Integração Interinstitucional, demandando que, em um mês, fosse elaborada “uma proposta de um programa similar a ser implementado no Brasil”. Em outro documento interno, uma funcionária do Ministério do Turismo pontua que “as concessões no turismo (…) poderiam reposicionar a relevância do ministério na esplanada”.

Dito e feito. Em exatamente 30 dias, no dia 24 de julho, uma apresentação de PowerPoint com 13 slides para uma proposta preliminar estava pronta. No início de setembro, um plano de trabalho completo foi finalizado, prevendo a implementação do programa neste ano, mas com uma série de passos ainda a serem tomados ao longo de 2020 até que a licitação do projeto-piloto seja executada.

Nessa discussão interna, um ponto importante foi a definição de que o Ministério do Turismo abriria mão da mera inspiração portuguesa para andar de mãos dadas, oficialmente, com o Instituto Turismo de Portugal na reprodução do Revive no Brasil. Quem deu a direção internamente foi o assessor Mateus Martins. Ele indicou, segundo ata da reunião que obtive, que “seria mais estratégico seguir com o modelo implementado em Portugal, que já dispunha de metodologia e processos pré-definidos, além da possibilidade de orientação por parte da equipe do Turismo de Portugal, o que facilitaria a implementação do programa no Brasil”, argumento repetido pelo Ministério do Turismo quando os questionei sobre o modelo de parceria.

A decisão coloca poder nas mãos dos portugueses — do setor público e privado. O plano de trabalho prevê, por exemplo, que o desenho do imóvel piloto do programa no Brasil será definido em conjunto com os portugueses.

Há candidatos para esse posto na planilha dos imóveis da União. O próprio ministério já definiu que o piloto poderá partir dessa lista, a partir de três filtros aplicados ao levantamento. Dos 222 imóveis, ficaram 34 para serem usados numa adaptação mais direta do Revive – ou seja, têm que ser necessariamente edificações (não valem terrenos neste momento) e que estejam já no Mapa do Turismo brasileiro.

A decisão coloca poder nas mãos dos portugueses — do setor público e privado.
Entre as prioridades definidas estão, no Rio de Janeiro, o Forte de Copacabana, o Forte do Leme, o Museu Aeroespacial, o Museu do Exército, o Forte da Conceição, o Observatório Nacional, a Fortaleza São João e o Cais Imperial de Sepetiba. Em Brasília, estão a Praça dos Três Poderes, o Teatro Nacional, a Ermida Dom Bosco e a Praça do Cruzeiro.

Por e-mail, a assessoria de imprensa do ministério disse que não há nada definido e que o piloto irá focar em prédios desocupados, levando em conta tanto a distribuição geográfica quanto “a relação do imóvel com a cultura lusófona”.

Na definição de qual será o imóvel piloto, vale prestar atenção às movimentações do Vila Galé, segundo maior grupo hoteleiro de Portugal, atrás do Pestana. A empresa esteve na linha de frente da implementação inicial do programa na Europa. Foi justo o primeiro hotel viabilizado com o programa, erguido sobre a estrutura de um convento na região do Alto Alentejo, que recebeu a comitiva liderada por Mateus Martins durante parte da passagem por Portugal em junho.

No Brasil, o Vila Galé já está sendo pioneiro. No último dia 24 de setembro, o grupo assinou um termo de compromisso com o governo da Bahia. Os portugueses farão um “estudo de viabilidade técnica, econômica e jurídica” para um “Projeto de Intervenção” no prédio sede do Palácio Rio Branco, para a “instalação de empreendimento hoteleiro de nível superior (hotel de luxo)”. Pelo prazo previsto no acordo, o estudo deve estar concluído até o Natal. O palácio foi centro de decisão e residência oficial dos primeiros governadores do Brasil e vice-reis de Portugal ainda no século 16 e seguiu assim até o início do século passado, quando foi bombardeado numa revolta.

Ainda em junho, o secretário de Turismo da Bahia, Fausto Franco, deu o tom do que está por vir. “Estamos mapeando imóveis que podem ser incluídos numa primeira etapa, a fim de impulsionar a instalação de novos restaurantes, hotéis, cafeterias, lojas de artesanato e outros equipamentos que ativem o mercado turístico, com desenvolvimento econômico”, disse o secretário.

A cúpula do Vila Galé é convidada especial para um seminário organizado pelo Ministério do Turismo em que, pela primeira vez publicamente, o programa Revive será discutido no Brasil. O encontro de três dias, sobre aproveitamento de patrimônios históricos e culturais, acontece entre 23 e 25 de outubro, em Porto Alegre. Representantes do Instituto Turismo de Portugal também estarão presentes.

Duas semanas antes do convite ser enviado, os responsáveis do Vila Galé estiveram no Ministério do Turismo, onde se reuniram com Babington dos Santos, o secretário de Integração Interinstitucional. Conhecido como Bob Santos, ele é uma figura muito importante nessa articulação. Grande parte das definições sobre o programa passam por ele. É dele a atribuição regimental de “delimitar e promover a regularização e o desenvolvimento turístico das áreas de domínio da União com potencial para o desenvolvimento do turismo e de articular programas, projetos e ações que promovam a realização de concessões e parcerias público-privadas para o desenvolvimento de destinos turísticos”.

Mas o poder de Bob Santos não é mera questão de palavras. Ele chegou ao ministério ainda no ano passado, em maio. Veio apadrinhado por Herculano Passos, deputado federal pelo MDB paulista que preside a Frente Parlamentar do Turismo. Passos é um dos maiores representantes dos interesses do setor hoteleiro e turístico em geral no Congresso. Uma de suas bandeiras é a legalização dos cassinos no país. Recentemente, foi designado por Jair Bolsonaro vice-líder do governo na Câmara. Foi também de Passos a indicação, chancelada pela Frente Parlamentar, de Marcelo Álvaro Antônio para o ministério. Bob Santos foi o principal assessor de Passos desde o início do mandato do deputado, ex-prefeito de Itu, na Câmara. Uma eventual queda de Marcelo Álvaro Antônio não deverá afetar sua permanência na pasta. E a equipe que está tocando o Revive é quase toda subordinada a ele.

O PLANO ANGRA
A Vila Galé não é novata no país. Seu site mostra hotéis de encher os olhos e esvaziar os bolsos. Seu foco são hóspedes de alto poder aquisitivo. Uma de suas unidades mais charmosas representa a prévia do sonho de Jair Bolsonaro de ter uma nova Cancún em Angra dos Reis, no litoral fluminense. O Eco Resort Vila Galé de Angra, com uma praia particular, cobra por volta de R$ 1.700 a diária para um quarto de casal.

E é em Angra dos Reis que está um dos planos colocados em marcha pelo governo, como deixam claro os documentos aos quais tive acesso. Não é segredo que, entre as trocentas bravatas de Bolsonaro, está a idealização de uma abertura generalizada ao turismo em Angra – onde o presidente tem imóvel. Uma de suas obsessões é acabar, ou ao menos reduzir, a Estação Ecológica de Tamoios, que protege a paradisíaca baía localizada entre Angra e Paraty. O que não se sabia é que isso não é apenas uma bravata. O Plano de Ação para o Turismo em Angra dos Reis, apresentado pelo governo federal a representantes da prefeitura numa reunião realizada em agosto deste ano, indica que uma das estratégias é “rever a categoria da unidade de conservação de forma que concilie a possibilidade de visitação, sem impactar na preservação ambiental”. Essa ação, no entanto, dependerá da avaliação do Instituto Chico Mendes, o ICMBio).

A planilha com os 222 imóveis depende majoritariamente do governo.
Se mudanças nas regras de preservação da Estação Ecológica de Tamoios ainda dependem de outros fatores, a planilha com os 222 imóveis depende majoritariamente do governo. Todo um arcabouço regulatório já oficializado durante os primeiros meses de governo Bolsonaro garante espaço para uma forte presença de empresas privadas explorando áreas da União para fins turísticos – inclusive em unidades de conservação, como Tamoios.

No fim de julho, uma portaria do Ministério do Meio Ambiente criou uma comissão para avaliar estratégias e definir modelos jurídicos de concessão turísticas em unidades de conservação. Na lista das possibilidades de concessões estão práticas de “turismo ecológico” em geral e de recreação em contato com a natureza (arvorismo, por exemplo). Essas iniciativas podem envolver novas construções nessas áreas de conservação.

Em abril, uma das medidas tomadas na celebração dos 100 primeiros dias de governo foi definir uma política oficial de estímulo direto do governo federal para o desenvolvimento de “produtos turísticos” (privados ou bancados por dinheiro privado) nos sítios do Patrimônio Mundial reconhecidos pela Unesco. Entre os sítios naturais estão as zonas de Mata Atlântica, a Amazônia, o Pantanal, a Chapada dos Veadeiros, Fernando de Noronha… E, entre os culturais, Ouro Preto, centros históricos de Salvador e Olinda, entre vários outros. Essa política, que ainda será regulamentada, prevê também o apoio para a elaboração de projetos e “modelos de negócio” para ações nessas áreas. Na área ambiental, o decreto também prevê “o apoio à elaboração ou à revisão dos planos de manejo das Unidades de Conservação que constituem os Patrimônios Mundiais”.

A medida mais recente, tomada em setembro, coloca o Ministério do Turismo como o grande intermediário entre os interesses de empreendedores e a Secretaria do Patrimônio da União, a SPU. O órgão, no entanto, tem poder de iniciativa tanto para propor uso turístico de áreas da União por conta própria quanto para garantir a reserva de áreas para que, futuramente, sejam exploradas comercialmente via hotéis, resorts ou outros tipos de empreendimento. Em paralelo, a SPU irá “apresentar áreas de reconhecido interesse do turismo local e nacional ao Ministério do Turismo para que avalie a regularização de empreendimentos ou desenvolva projetos para o local”.

Questionado, o ministério evitou responder se foi orientado por Bolsonaro a priorizar Angra e jogou para a pasta do Meio Ambiente a questão de Tamoios. Técnicos do ministério, diz a pasta de Turismo, já trabalham para a construção de planos de desenvolvimento em outras áreas como a Rota das Emoções, no Lençóis Maranhenses.

É nesse ponto que aquela relação gigantesca, e que ainda vai crescer, de áreas que o Ministério do Turismo está disposto a passar pra frente pode se viabilizar. Na planilha do governo, há, além das edificações, que serão priorizadas no programa Revive, terrenos. Muitos terrenos. Estão lá o Parque Nacional de Jericoacoara (no Ceará), Parque Nacional do Ubajara (também no Ceará, em área de vegetação, onde há um teleférico público), o Parque Nacional da Chapada dos Guimarães (Mato Grosso), o Parque Nacional da Serra da Capivara (localizado no Piauí, considerado Patrimônio Cultural da Humanidade, tem 100 mil hectares e a maior concentração de sítios arqueológicos atualmente conhecida das Américas), entre outros.

Destaques também, em Brasília, para a Orla do Lago Paranoá, o Parque da Cidade, o Jardim Botânico e a Floresta Nacional de Brasília (área de Cerrado, com as nascentes que abastecem a maior represa da região, responsável por abastecer a maior parte da capital federal).

Em maio, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, já admitiu a intenção de privatizar os parques nacionais. Uma reportagem do Estadão citou quatro: Jericoacoara, Lençóis Maranhenses, Chapada dos Guimarães e Aparados da Serra. O Pantanal, por exemplo, como muitos outros, não estava na lista divulgada pelo ministro. Mas está na planilha do Ministério do Turismo.

O plano, pelo jeito, é alugar o Brasil.

Um dos documentos é uma planilha produzida no primeiro semestre deste ano que lista 222 propriedades da União, espalhadas por 17 estados e Distrito Federal, que o governo quer passar para a iniciativa privada explorar.

Do The Intercept Brasil