Esquerda começa a voltar no mundo – agora, na Inglaterra
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O dilema do Brexit que engole o Reino Unido há três anos está provocando viradas impensáveis no panorama político britânico, antes tão previsível e disciplinado. Uma das mais surpreendentes envolve o problemático líder do Partido Trabalhista, Jeremy Corbyn. Militante da esquerda à moda antiga, cria do sindicalismo, frequentemente acusado de antissemitismo, Corbyn deslanchou neste mês uma feroz campanha das eleições antecipadas para 12 de dezembro com a firme intenção de pôr o reino no caminho do que ele chama de “socialismo democrático”.
Não veio para brincadeira. No primeiro discurso, desancou os “poucos privilegiados” que se beneficiam do “sistema corrupto” e deu nome aos tubarões. Citou: 1) o duque de Westminster, proprietário de bairros inteiros de Londres, a quem acusou de pôr famílias na rua para construir prédios de luxo; 2) Mike Ashley, dono de grandes redes de lojas, “bilionário que não paga o que os empregados merecem e está destruindo um time de futebol” — no caso, o Newcastle United, que também é seu; 3) Jim Ratcliffe, presidente do gigante petroquímico Ineos, “ricaço que ganha dinheiro poluindo o meio ambiente”; 4) Crispin Odey, gestor de fundo de investimentos “que ganha milhões apostando contra o país e na miséria dos outros”; e, por último, mas nada menor, 5) Rupert Murdoch, barão da mídia, cujo “império faz jorrar propaganda para um esquema viciado”. Seu adversário, o conservador Boris Johnson, não deixou por menos: acusou Corbyn de demonizar pessoas “com um desejo de vingança como não se via desde Stalin”, o mais cruel ditador soviético.
Vegetariano, 70 anos, o líder trabalhista tem propostas de arrepiar os cabelos dos que acreditam numa linha liberal da economia. Desde que a perspectiva de eleição se firmou no horizonte, o partido já propôs, entre outras medidas, confiscar 10% das ações das grandes empresas para repassá-las aos funcionários e promover um vasto programa de nacionalização. Também faz parte da agenda acabar com as escolas particulares e instaurar a semana de trabalho de quatro dias. Pelas declarações iniciais de Corbyn, conclui-se que a ala mais à esquerda vai para essa briga de foice e martelo em punho, sem os panos quentes que pôs na eleição de 2017, também antecipada por culpa do Brexit (o Partido Conservador venceu, mas perdeu sua maioria).
Digam o que disserem os candidatos em campanha, o ponto central da votação de dezembro é desatar o nó do Brexit. Boris Johnson conta com uma vitória que expurgará Westminster dos conservadores dissidentes e lhe dará a maioria de que precisa para ou aprovar um acordo ou sair da União Europeia sem acordo algum. Corbyn espera que o alto nível de irritação dos britânicos com o processo — e as trapalhadas de Boris desde que assumiu, em julho — incentive os eleitores a votar na oposição, que promete, ato contínuo, convocar um novo referendo sobre a saída da UE. Nas pesquisas, conservadores estão vários pontos à frente de trabalhistas, mas o volátil clima político do país desafia qualquer aposta, ainda que apostar seja um esporte nacional.
A favor de Corbyn, no momento, está o pavor generalizado de um Brexit sem acordo, ameaça que Boris brandia com vigor, mas que vem relativizando desde que virou candidato. Uma saída abrupta significa, para o Reino Unido, a perda, de um dia para outro, de um mercado de meio bilhão de pessoas. Mesmo que os Estados Unidos ocupem parte do espaço (como Donald Trump já prometeu, de loiro para loiro, a Boris) e que os laços comerciais com a Europa sejam paulatinamente refeitos, o impacto deve ser devastador. Antecipa-se um caos na circulação de pessoas e mercadorias, e as famílias do reino estão há meses enchendo a despensa diante da expectativa do maior desabastecimento desde a II Guerra.
Segundo dados do Banco de Compensações Internacionais, que supervisiona o sistema bancário mundial, em março, o último mês com informações disponíveis, os britânicos despacharam o equivalente a 19 bilhões de dólares para a Suíça e 14 bilhões para Luxemburgo. Nesse quadro, Corbyn, o vermelho, é visto como mal menor por todo mundo que tem muito a perder — inclusive banqueiros e executivos de grandes conglomerados. “Nacionalizar empresas é uma péssima ideia. Mas causará menos prejuízos do que um Brexit descontrolado”, resume Christian Schulz, analista financeiro de Londres. Haja pragmatismo.