Lava Jato do Peru pediu para delator mentir

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Foto: Cris Bouroncle/AFP – Manuel Medir/LatinContent/Getty Images – Mariana Bazo/Reuters – Luiz Rampelotto/Pacific Press/LightRocket/Getty Images

Dois membros do Ministério Público do Peru foram gravados induzindo um preso a mentir ou omitir fatos sobre sua ligação com investigados na Lava Jato peruana — principalmente funcionários da empreiteira Odebrecht. Dessa forma, não haveria contradições nas denúncias que os investigadores preparavam contra políticos do país, entre eles o ex-presidente Ollanta Humala. Os arquivos de áudio foram entregues ao Intercept por uma fonte que pediu para não ser identificada e analisados em conjunto com o site de jornalismo investigativo OjoPúblico.

O preso é Martín Belaunde Lossio, um marqueteiro e operador político que aspira a se tornar delator premiado para se livrar da prisão. Ex-braço direito de Humala em suas campanhas presidenciais, ele é peça-chave em ao menos um processo contra o político, que governou o Peru entre 2011 e 2016.

Nas gravações, Belaunde afirma que um procurador do Equipo Especial (equivalente à força-tarefa da Lava Jato no Brasil) lhe pediu para mentir e dizer que não sabia de uma alegada doação eleitoral de 400 mil dólares da Odebrecht a Humala porque o ex-diretor da construtora, Jorge Barata, havia negado ter feito o pagamento.

“O que o senhor vai nos dizer precisa ter concordância com a tese da procuradoria”, deixa claro outro procurador, David Castillo, a Belaunde e seu defensor, Luis Fernando de la Cruz, em um dos áudios.

O aspirante a colaborador e seu advogado se mostram dispostos, em vários trechos das gravações, a mentir ou omitir para agradar os procuradores. “Se for útil para o senhor, nós incluímos. Se não for útil, é como se não existisse”, responde Belaunde. Castillo é subordinado a outro procurador, Elmer Chirre, que também aparece nas gravações e comandou a acusação no primeiro caso derivado da Lava Jato peruana que resultou em condenação.

Os procuradores gravados não fazem parte diretamente da equipe encarregada da Lava Jato no Peru. Mas a delação de Belaunde abasteceria as investigações do Equipo Especial, responsável por conduzir o braço peruano da Lava Jato, que investiga propinas pagas pela Odebrecht no país.

Caso Belaunde mantivesse a versão de que sabia do pagamento à campanha do político, haveria uma contradição grave entre dois dos principais acusadores no caso contra Humala. Mas o pedido da procuradoria foi aceito pelo candidato a delator, que retirou o relato sobre o dinheiro da Odebrecht de sua proposta de delação e assim deu consistência à denúncia da Lava Jato peruana.

Os procuradores também discutiram com Belaunde e seu advogado sobre a necessidade de que a proposta de delação premiada fosse avaliada pelo juiz Richard Concepción Carhuancho, o Sergio Moro peruano. Nas mãos dele, que lida com os casos da Lava Jato no Peru, haveria mais chances do acordo ser aceito, avaliaram.

Ao todo, são mais de 12 horas de conversas, gravadas antes, durante e depois dos interrogatórios oficiais de Belaunde em março de 2019 na prisão de segurança máxima de Piedras Gordas, onde o aspirante a delator está detido.

Confirmamos a veracidade dos áudios com base em quatro evidências: os interlocutores (Belaunde, seu advogado e os procuradores) se identificam com nomes e sobrenomes e fornecem informações pessoais que checamos (Chirre fala sobre seu local de origem e de la Cruz sobre outro de seus clientes). Além disso, duas atas com as declarações de Belaunde correspondem ao que foi dito nos áudios (assinadas pelos protagonistas), e pelo menos uma voz extra corresponde a um agente penitenciário de Piedras Gordas.

As gravações não fazem parte do arquivo da Vaza Jato, recebido pelo Intercept de outra fonte.

Os desdobramentos internacionais da Lava Jato já tiveram impacto em dezenas de países, mas é difícil apontar um lugar em que a operação seja mais acelerada e ruidosa do que o Peru.

A atividade de empreiteiras brasileiras no Peru está no radar de autoridades locais pelo menos desde 2015, quando a Lava Jato ainda era um fenômeno em expansão no Brasil. Naquele ano começaram a repercutir, na imprensa do país, episódios como uma operação em São Paulo contra Zaida Sisson, esposa de um ex-ministro do Peru e próxima de José Dirceu, ex-chefe da Casa Civil do governo Lula, e relatos de que operadores do doleiro Alberto Youssef teriam viajado a Lima com dinheiro escondido.

Os indícios se acumularam com tal velocidade que o Congresso do país abriu, em outubro de 2015, uma Comissão Investigadora — uma versão local de uma CPI brasileira — para investigar obras que Odebrecht, Camargo Corrêa, OAS, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão e outras empreiteiras tocaram no Peru. Em junho de 2016, após quase nove meses de trabalho, os parlamentares apuraram suspeitas de irregularidades em oito projetos, mas o presidente da comissão, o deputado Juan Pari, foi isolado e teve que assinar sozinho o relatório final, que não chegou a ser lido em plenário.

Mas o grande empurrão à Lava Jato peruana viria em dezembro de 2016. Na época, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos divulgou que o grupo Odebrecht e a Braskem, sua subsidiária do setor petroquímico, haviam fechado um acordo com autoridades brasileiras, norte-americanas e suíças, no qual confessaram o pagamento de propinas em 12 países, inclusive o Peru. O Ministério Público local reagiu imediatamente à revelação dos americanos e criou, menos de uma semana depois, a força-tarefa da Lava Jato no país.

As gravações de procuradores do Peru mostram que o vale-tudo jurídico não ficou restrito à Lava Jato brasileira.

Como no Brasil, a Lava Jato peruana causou um terremoto na política local. Quatro ex-presidentes foram alvos de mandados de prisão preventiva — um deles, Alan García, atirou contra a própria cabeça antes de ser preso em abril passado. Alejandro Toledo (atualmente preso nos Estados Unidos a pedido da Lava Jato peruana) e Pedro Pablo Kuczynski (que renunciou diante da iminência de um impeachment após acusação de receber propina da Odebrecht) também estão na mira dos procuradores.

Ollanta Humala e a mulher, Nadine Heredia, passaram mais de nove meses presos preventivamente, de julho de 2017 a abril de 2018. Ele foi o primeiro ex-presidente a ser formalmente denunciado pela procuradoria peruana, mas isso só ocorreu mais de um ano depois dele e a mulher serem soltos graças a um habeas corpus.

A Vaza Jato vem mostrando que o Judiciário e o Ministério Público brasileiros lançaram mão de procedimentos ilegais ou questionáveis para atingir seus objetivos. As gravações de procuradores do Peru mostram que o vale-tudo jurídico não ficou restrito aos brasileiros.

As atitudes reveladas nos áudios são ilegais. O decreto que criou regras para as colaborações premiadas no país determina que devem ser negados acordos em que o candidato a delator informa algo que “não é útil, relevante, suficiente e pertinente”. A “falsidade da informação” também deve resultar na anulação do acordo, diz a lei peruana.

As negociações gravadas com Martín Belaunde ocorreram ao longo de cinco encontros entre o candidato a delator, o advogado dele e dois procuradores responsáveis por uma investigação regional conhecida como caso La Centralita. Embora não fosse parte da Lava Jato peruana, essa apuração esbarrou, em 2017, em suspeitas de crimes da Odebrecht.

Os procuradores, Elmer Chirre e David Castillo, não eram da equipe especial da Lava Jato no Peru, mas haviam fechado acordos de delação com dois ex-funcionários da Odebrecht na sua investigação paralela. Chirre era o coordenador destes trabalhos, e Castillo, procurador adjunto, integrante da equipe.

Jorge Barata também é um dos 78 executivos da Odrebrecht que fizeram delação premiada no Brasil.

Já era de conhecimento público, desde 2017, que as versões de Belaunde e de Jorge Barata, ex-diretor da Odebrecht no Peru e principal delator da empresa no país, não coincidiam. A contradição estava nas narrativas sobre um episódio envolvendo o ex-presidente Ollanta Humala, que estava próximo de ser denunciado, como já anunciava a Lava Jato peruana. Barata também é um dos 78 executivos da empreiteira que fecharam delação premiada com a Lava Jato brasileira.

A dupla do Ministério Público temia as eventuais discrepâncias entre o depoimento de Belaunde e as delações que eles já haviam colhido no caso La Centralita sobre a Odebrecht. Nesse caso, a construtora era suspeita de ter pago propinas por obras em Áncash, um departamento localizado ao norte da região da capital Lima, durante a administração do ex-governador César Álvarez.

Os procuradores também buscavam ocultar dissonâncias com a investigação dos colegas da Lava Jato peruana.

Belaunde, que está preso preventivamente (ou seja, ainda não foi condenado), falou aos procuradores na condição de “aspirante a colaborador”, status jurídico dado no Peru a quem tenta emplacar um acordo de delação. As atas de algumas destas reuniões, que são sigilosas, mas que Intercept e OjoPúblico também analisaram, reproduzem os interrogatórios de forma protocolar. Os documentos, no entanto, não fazem referência aos acordos irregulares entre acusação e testemunha.

Nas gravações, o procurador Castillo diz a Belaunde e seu defensor que estava agindo em sintonia com a equipe da Lava Jato peruana e menciona o colega Germán Juárez, este sim membro da força-tarefa no país e responsável pelo caso de Ollanta Humala e da mulher dele.

Desde então, as negociações não evoluíram. Menos de dois meses depois do início delas, em maio, a Lava Jato peruana denunciou o ex-presidente Humala e mais 12 pessoas e empresas, incluindo Belaunde. Uma parte do que ele disse em sua proposta de delação, no entanto, contradizia a versão de Barata, da Odebrecht. O trecho foi ignorado e ficou de fora do processo, que ainda não foi julgado.

Questionado a respeito do conteúdo das gravações, o procurador Castillo disse não se lembrar de detalhes das reuniões com Belaunde e não quis se manifestar sobre as instruções que deu para que não houvesse contradições nos depoimentos. “Eu nem saberia o que falar sobre essa informação, porque ela me surpreende”, afirmou. Já a defesa de Belaunde foi procurada, mas não quis comentar o assunto.

Martín Belaunde Lossio era empresário, dono de uma produtora de vídeos de propaganda política, quando foi chamado a trabalhar como assessor na campanha de Ollanta Humala à presidência do Peru em 2006. A chapa fechou o primeiro turno na liderança, com 25,68% dos votos, mas o adversário de Humala, Alan García, virou o jogo no segundo turno e venceu com 52,62% dos votos válidos.

Cinco anos depois, em 2011, Humala concorreu novamente e voltou a chamar Belaunde para atuar na campanha. Desta vez, Humala foi ao segundo turno contra Keiko Fujimori, filha do ex-presidente Alberto Fujimori — ambos estão presos, atualmente — e venceu por margem apertada, com 51,45% dos votos.

Em maio de 2014, Belaunde foi alvo de uma ordem de prisão preventiva por envolvimento no caso La Centralita, investigação que só passaria a interessar à Lava Jato peruana com a entrada da Odebrecht. É um processo que corre desde 2011 e desnudou um centro de espionagem política no governo do departamento de Áncash que operava pagamentos a policiais, membros do Ministério Público e jornalistas com dinheiro de propina cobrada pelo grupo do ex-governador Álvarez.

Antes que fosse capturado, porém, Belaunde fugiu e passou meses desaparecido até ser descoberto, em dezembro de 2014, na Bolívia, onde pediu refúgio. A aventura no país vizinho foi rocambolesca. O empresário acabou detido em território boliviano menos de um mês depois, em 20 de janeiro de 2015, mas saiu da cadeia para responder ao processo de extradição em prisão domiciliar na casa de uma prima em La Paz.

Em maio, porém, Belaunde desapareceu de lá, apesar de estar sob vigia da polícia, e contatou um programa de TV boliviano para afirmar que não havia fugido, mas sido sequestrado. Ele foi encontrado e detido menos de uma semana após a fuga, no norte do país. Acabou entregue às autoridades peruanas já no dia seguinte, para não mais escapar.

Numa das gravações, em depoimento ao procurador Alan Castillo na condição de aspirante a delator, em 18 de março, Belaunde fala sobre a relação dele com vários investigados, inclusive representantes do grupo Odebrecht no Peru. O procurador cita uma série de nomes, e o candidato a delator fala da relação que tinha com cada um. A lista inclui Jorge Barata, ex-diretor e principal delator da Odebrecht no país.

 

 

 

 

Belaunde, que dizia já ter colaborado com a força-tarefa da Lava Jato peruana, faz uma confissão sem qualquer constrangimento. O candidato a delator afirma que o procurador Juárez, membro da Lava Jato peruana e responsável pela denúncia contra Humala, pediu a ele, Belaunde, que mentisse sobre sua relação com o ex-diretor da Odebrecht.

Como Barata já havia declarado em sua colaboração que não conhecia Belaunde, o candidato a delator diz que Juárez pediu a ele, inicialmente, para fazer o mesmo, ou seja, negar que conhecesse o executivo. Logo na sequência da conversa, porém, Belaunde afirma que houve um arranjo, e os dois decidiram não “corrigir” essa parte do depoimento:

 

 

Esta gravação, vale lembrar, ocorreu durante uma tomada de depoimento oficial, que deixaria registro por escrito. Para “não ter também um problema” com Juárez — ou seja, não extrair de Belaunde um depoimento que contrariasse o que ele havia dito à Lava Jato —, Castillo decidiu repetir em seu interrogatório a resposta que Belaunde contou ter dado a Juárez: dizia conhecer Barata desde 2006, mas não adicionava informações.

Esse não foi o único problema. Embora o ex-dirigente da Odebrecht dissesse que não conhecia Belaunde, o ex-marqueteiro ia além e afirmava que tratou com Barata do repasse de 400 mil dólares para a campanha de Humala em 2006.

Belaunde conta na gravação que teve esse relato suprimido do depoimento à Lava Jato peruana devido à contradição. “Simplesmente que Barata negou tudo, então obviamente que Juárez colocou de lado [o que eu disse]. Não é parte da colaboração”, disse o preso na gravação.

O assunto voltou à pauta em uma nova reunião para tratar da proposta da delação de Belaunde. O advogado afirmou que a declaração de Barata, da Odebrecht, era o “calcanhar de aquiles” para a narrativa que seu cliente deveria oferecer para fechar delação:

 

 

A versão de Belaunde sobre os supostos 400 mil dólares havia sido usada, em 2017, para reforçar a ordem de prisão contra Humala. Negado pela própria Odebrecht, porém, o relato ficou de fora não apenas do registro escrito da proposta de delação de Belaunde como também foi ignorada na denúncia contra Humala, feita dali a menos de dois meses.

Usada para manter Humala preso preventivamente, alegada doação da Odebrecht sumiu de delação e denúncia contra o político.

O procurador Juárez negou ter forjado a declaração Belaunde sobre Barata. “Quando tomei o depoimento de Belaunde, eu disse o que ele [Barata] tinha mencionado, e que, portanto, sua declaração não havia sido corroborada. Mas eu não disse que ele deve declarar que não conhece Barata, porque não há nenhuma declaração desse tipo”, afirmou.

Ele disse que não pediu a Belaunde que omitisse sua versão sobre o suposto repasse de 400 mil dólares a Humala em 2006. “Eu não posso sair fazendo acusações extremas sem ter respaldo, se não os fatos não vão corroborá-las. Mas isso não quer dizer que tenho dito a este colaborador que deve dizer que algo não foi assim como foi. Só que ele me interpretou mal”.

Apesar de Belaunde tratar esporadicamente de Ollanta Humala nas gravações, o ex-presidente não era o foco principal de sua proposta de delação. O interesse dos procuradores era detalhar a participação de Belaunde no caso La Centralita, cujo alvo central era o ex-governador de Áncash, César Álvarez.

Entre as suspeitas contra Álvarez, estava a de que ele e seu grupo cobraram propinas da Odebrecht por pelo menos duas obras, e Belaunde estaria envolvido em um destes casos.

Outra delação revelada em fevereiro de 2019, pouco antes dos encontros gravados, afirmava que Belaunde pediu propina à Odebrecht, em nome de Álvarez, para conceder à empreiteira o contrato do projeto Chinecas, uma obra de irrigação no departamento de Áncash. O negócio, segundo esse depoimento, não se concretizou porque o ex-governador exigia 10% do valor da obra, e a empreiteira só aceitava pagar 2,5%.

Logo que se sentou para conversar com Belaunde e o advogado dele no dia 18 de março, ainda antes da tomada do depoimento oficial, o procurador Castillo alertou aos dois que toda a documentação que o postulante a delator quisesse entregar sobre o caso teria que “ter concordância com a tese da procuradoria”. Se contrariasse o que o Ministério Público já havia colhido com outros delatores, a informação não serviria.

 

 

Logo nos primeiros minutos da conversa gravada, Belaunde aponta um erro dos procuradores: o empresário era acusado de atuação nos crimes ligados à Odebrecht a partir de 2008, mas diz que todas as reuniões que teve com os representantes da empreiteira, na qual se discutiu pagamento de propina pela obra de irrigação em Áncash, haviam sido em novembro de 2007. Castillo não titubeia: “Vamos ver o jeito de corrigi-lo, para que isso coincida com a informação que você nos forneceu”.

 

 

À época em que Belaunde foi interrogado, o caso La Centralita já contava com a colaboração de vários delatores. Um deles era Jorge Burgos Guanilo, que dirigiu a empresa de marketing político de Belaunde e foi apontado, mais tarde, como operador do ex-governador de Áncash, César Álvarez. Em uma das gravações, Belaunde deixa claro que muitas das provas que ele pretende oferecer contrariam o que Burgos havia dito em sua delação:

 

 

Em outro trecho da gravação, o procurador Castillo deixa claro que tudo aquilo que fosse contraditório deveria ser suprimido. Belaunde responde se oferecendo para fazer uma lista com todas as informações que possui, para que os procuradores pudessem escolher, uma a uma, as que devem ficar de fora do depoimento oficial:

 

 

Belaunde e os demais acusados no caso La Centralita seguem respondendo ao processo, que ainda não foi julgado. Uma das linhas de investigação contra a Odebrecht em Áncash, que apurava o pagamento de propinas pela construção de uma estrada na região, resultou no primeiro processo com sentença envolvendo a empreiteira no Peru. Esse caso, porém, não tem relação com o esquema da obra de irrigação de Chinecas, que Belaunde narrou aos procuradores.

Apreocupação dos procuradores não era apenas ajustar os depoimentos de Belaunde às informações de que já dispunham. Eles avaliavam que, para que a delação fosse fechada — o que não ocorreu até o momento —, ela deveria ser submetida a Richard Concepción Carhuancho, juiz de instrução da Lava Jato no Peru, e não a outra magistrada.

O juiz Carhuancho já declarou ser inspirado pela “filosofia de trabalho” do ex-juiz Sergio Moro, à época condutor da Lava Jato no Paraná e hoje ministro da Justiça do governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro. Como Moro e os procuradores, ele também compartilha o deslumbramento com a fama: um ex-ministro de Alan García disse, em 2018, que o magistrado é um homem honesto que “se deixou cegar pela notoriedade”.

Inexistente no processo criminal brasileiro, o juiz de instrução, ou de garantias, atua na fase inicial do processo (autoriza prisões e medidas de investigação), mas não emite sentenças condenando ou absolvendo os acusados. Na prática: se tivesse o mesmo papel que Carhuancho, Moro teria a tarefa de autorizar operações e ouvir testemunhas e réus nos processos contra Lula, mas o julgamento do ex-presidente caberia a outro juiz.

Carhuancho havia acompanhado apenas o início do caso La Centralita. Os procuradores, Elmer Chirre e David Castillo, já haviam fechado várias delações neste processo quando se sentaram para negociar com Belaunde. Eles temiam que a eventual delação fosse submetida à revisão de María de los Ángeles Álvarez Camacho, a juíza de instrução do caso La Centralita. Além de conhecer todas as colaborações do processo, a juíza Álvarez também foi responsável por revisar o acordo de colaboração com a Odebrecht, que tinha dois ex-funcionários entre os delatores do caso.

“Então, se vamos com uma versão talvez um pouco contraditória, diferente do que ela tem, ela não vai aprovar”, diz o procurador Castillo a Luis Fernando de la Cruz, advogado de Belaunde, referindo-se à juíza Álvarez.

O juiz Richard Carhuancho não participa de nenhuma conversa gravada no presídio de Piedras Gordas, mas tanto o procurador Castillo quanto o advogado de Belaunde comentam de maneira reiterada que um eventual acordo de delação selado ali só teria chance de ser homologado se caísse nas mãos dele.

Logo no começo da conversa gravada em 18 de março, ainda antes do início da tomada oficial do depoimento, o procurador Castillo expõe o problema à mesa:

 

 

O fato de Belaunde interessar tanto à Lava Jato peruana quanto à equipe de Chirre poderia suscitar um conflito de competências na justiça sobre quem iria homologar seu eventual acordo de delação: seria Carhuancho, que conduzia os processos da Lava Jato peruana em primeira instância? Ou a tarefa caberia à juíza Álvarez, que era revisora de todos os acordos da Odebrecht? Os procuradores torciam para que fosse Carhuancho.

 

 

A conversa deixa claro que a preferência do grupo por Carhuancho não se devia a uma cumplicidade do juiz, mas, sim, ao fato dele ignorar detalhes do caso, que não estava sob o escopo da equipe da Lava Jato no Peru. Era nisso que Belaunde e os procuradores apostavam para que a delação fosse fechada, o que até o momento não ocorreu.

Enviamos questões a respeito dos fatos apresentados na reportagem a Elmer Chirre e Richard Concepción Carhuancho, para que fizessem comentários. Nenhum deles respondeu até a publicação deste texto.

The Intercept