Vivi Zanatta/Folhapress

O guru de Bolsonaro odeia judeus

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OLAVO DE CARVALHO GOSTA de dizer que seus críticos não conhecem sua extensa obra. Sorte dele: quem lê com alguma atenção os livros e artigos do ideólogo do governo Bolsonaro encontra problemas muito mais graves do que sua obsessão pelos ânus alheios – como a seletiva discriminação contra judeus (antissemitismo) que o filósofo vem espalhando há mais de 20 anos.

Ligar Olavo de Carvalho ao antissemitismo pode soar estranho. Afinal, ele já se colocou como um crítico feroz da perseguição ao povo judaico, um devoto fervoroso da tradição judaico-cristã e um defensor intransigente de Israel – cujo atual governo é um dos principais aliados do Brasil de Bolsonaro. Mas alguns de seus textos propagam típicas ideias antissemitas.

Parte da discriminação de Olavo contra judeus vem emaranhada em uma visão de mundo paranoica. O escritor parece acreditar em todo tipo de teoria da conspiração – que a Pepsi usa células de fetos para produzir adoçantes; que Barack Obama não nasceu nos Estados Unidos; que vacinas matam; e que não há “resposta definitiva” sobre a Terra ser redonda e girar em torno do Sol –, sem falar no “marxismo cultural” e nos exageros delirantes sobre o Foro de São Paulo.

Assim, não surpreende que, num livro de 2012, ele tenha dito que judeus fazem parte do que ele chama de Consórcio, uma inexistente organização “globalista” composta por “grandes capitalistas e banqueiros internacionais, empenhados em instaurar uma ditadura mundial socialista”.

O livro, intitulado ‘Os EUA e a nova ordem Mundial’, é a compilação de um debate entre Olavo e o escritor neo-fascista russo Aleksandr Dugin. Ao responder a uma provocação de Dugin sobre a presença de judeus no fantasioso Consórcio, Olavo afirma, com base em um amontoado de mentiras:

A presença de banqueiros judeus nos altos círculos do Consórcio é a coisa mais óbvia do mundo, como também a de militantes judeus na elite revolucionária que instaurou o bolchevismo na Rússia. Também é óbvio e patente que esses dois grupos de judeus colaboraram entre si para a desgraça do mundo. Continuaram colaborando até mesmo na época em que Stálin desencadeou a perseguição geral aos judeus e a sua querida KGB começou a devolver a Hitler os refugiados judeus que vinham da Alemanha. A colaboração dura até hoje. O barão Rothschild, por exemplo, é dono do Le Monde, o jornal mais esquerdista e anti-israelense da grande mídia européia, assim como a família judia Sulzberger é dona do diário americano que mais mente contra Israel. O Sr. George Soros, judeu que ajudou os nazistas a tomar as propriedades de outros judeus, financia tudo quanto é movimento anti-americano e anti-israelense do mundo.

Nesse curto trecho, Olavo dá pelo menos três informações falsas. Não há provas de que o Le Monde pertença aos Rothschild. Olavo confunde – propositalmente ou não – o veículo com outro jornal francês, o Libération, que em 2005 teve parte substancial comprada por um dos diversos membros da dinastia Rothschild, Edouard de Rothschild. O Le Monde tampouco pode ser chamado de jornal “mais esquerdista” da Europa, tendo em vista, mesmo na França, o Libération está mais à esquerda. Por fim, o financista e filantropo George Soros nunca “ajudou” nazistas. Na verdade,  ele foi perseguido pelos nazi durante a Segunda Guerra Mundial. Ao final do conflito, Soros tinha apenas 15 anos de idade.

Mais grave do que essas falsidades, porém, é a repetição de duas tradicionais mentiras antissemitas. Dizer que judeus fazem parte de uma conspiração para dominar o mundo é uma das mais antigas delas. Os “Protocolos dos Sábios de Sião”, uma ata forjada da suposta reunião em que um plano de dominação teria sido criado, foi usada, por exemplo, na Alemanha nazista para justificar a perseguição, a expulsão e o assassinato de judeus. Não para menos, essa acusação é explicitamente citada na definição de antissemitismo da Aliança Internacional de Recordação do Holocausto, uma organização intergovernamental composta por 33 países-membros, como Israel, Alemanha e os EUA.

É antissemita “fazer alegações mentirosas, desumanizantes, demonizadoras ou estereotipadas sobre os judeus em si ou o poder dos judeus como grupo”, afirma a Aliança. Um exemplo é “o mito sobre uma conspiração judaica mundial ou sobre judeus controlando a mídia, a economia, o governo ou outras instituições sociais”. É justamente esse mito que Olavo ativa no imaginário de seus leitores ao mencionar donos de jornais (Le Monde e The New York Times), “banqueiros” e financistas, como Soros.

Já a ligação feita no início do trecho entre judeus e o bolchevismo revolucionário russo alude a uma história igualmente sinistra. Afirmar que “militantes judeus” estavam por trás da revolução que instaurou o comunismo na Rússia em 1917 remonta a uma mentira utilizada pela propaganda do partido nazista para instigar o ódio contra seus dois principais inimigos: judeus e comunistas. Alguns dos revolucionários russos, como Leon Trotsky and Grigorii Zinoviev, eram de fato judeus. Mas a imensa maioria tinha origem cristã. Segundo o historiador Paul Hanebrink, autor de um livro recente sobre o assunto, o “Bolchevismo judaico”, como esse boato antissemita ficou conhecido, “teve perigosas e por vezes letais consequências para judeus na Europa”. Além de alimentar o holocausto, o boato foi usado em campanhas antissemitas de outros países, cujas elites temiam uma revolução proletária.

‘Eu seria antissemita’

No mesmo texto, Olavo deixa clara a seletividade de seu preconceito: alguns judeus merecem proteção; outros, que ele vê como falsos e impuros, devem ser demonizados. Quando se trata desses, ele não tem receio de dizer que abraçaria o antissemitismo – como se já não o tivesse feito:

Outro dia, uma comissão de judeus americanos, subsidiada por ONGs bilionárias e impressionada ante o assassinato brutal de uma família judia por um terrorista palestino, viajou para fazer uma visita de solidariedade… a quem? Aos parentes dos mortos? Não. À mãe do assassino! São esses os judeus dos quais você [Dugin] fala, fazendo de conta que eles são a expressão mais genuína e pura do judaísmo universal. Se eles o fossem, eu seria anti-semita.

O trecho não explica a que “comissão”, “ONGs” e “assassinato” o autor se refere. Para Thais Lancman, do Observatório Judaico de Direitos Humanos, a quem mostramos os textos analisados nesta reportagem, as ideias de Olavo sobre o Consórcio são antissemitas. “Nenhum dos outros membros do Consórcio tem sua atuação ligada à sua fé, etnia, origem”, afirmou. “Aparentemente, isso só é relevante quando se trata de judeus”.

Se em 2012 o alvo do antissemitismo de Olavo eram os fantasmagóricos judeus “globalistas”, nos anos 1990 ele mirava o sionismo, movimento geralmente laico que reivindica o direito do povo judeu de ocupar o território de Israel. Em “O jardim das aflições”, livro de 1995, Olavo sugere que, por não ser religioso, o sionismo teria contribuído para o holocausto. O assunto surge subitamente, após ele lamentar a “total desautorização da lei religiosa”:

É de espantar que, nessas condições, o movimento para a implantação de um Estado leigo judeu logo perdesse toda conexão com as tradições religiosas e passasse mesmo a ser chefiado por pessoas de origem judaica contrárias ao judaísmo? Ou que esse movimento, ao expandir-se, acabasse por fortalecer entre os judeus do Ocidente inteiro um espírito de mundanismo e “modernismo” que já os vinha contaminando gradativamente desde a Revolução [norte-americana], e que, dissolvendo os laços da solidariedade milenar que havia defendido a comunidade judaica contra toda sorte de perseguições, deixou o povo judeu inerme e sonso ante o avanço da ameaça nazista, só para ter de socorrê-lo às pressas ex post facto com o auxílio do dinheiro norte-americano?

A afirmação de Olavo é falsa. Não existe nenhuma evidência histórica de que a laicidade dos sionistas tenha deixado os judeus apáticos diante da ameaça nazista. A própria ideia de que eles aceitaram seu extermínio passivamente é um mito – eles se organizaram e tentaram resistir ativamente. De qualquer forma, é muito improvável que qualquer nível de “solidariedade” religiosa fosse capaz de deter o avanço de um exército genocida contra uma minoria essencialmente desarmada.

De acordo com Lancman, do Observatório Judaico de Direitos Humanos, não é possível falar nessa suposta perda de conexão religiosa, porque o sionismo já nasceu laico. Ela diz que a comparação de judeus com nazistas pode não ser “exatamente” antissemita, mas é “absolutamente revoltante”, pois “culpabiliza os judeus pelas perseguições sofridas”.

A definição de antissemitismo da Aliança Internacional de Recordação do Holocausto, contudo, reforça a existência de antissemitismo no texto. Segundo a organização, o antissemitismo “é frequentemente usado para culpar os judeus por as ‘coisas darem errado’”. E, ao escrever que certos judeus (os ateus) ajudaram a causar o massacre de sua comunidade como um todo, é isso que Olavo faz.

Ideólogo trata judeus e nazistas como gente da mesma laia

Dos textos antissemitas de Olavo, talvez o mais surpreendente tenha sido sua comparação entre judeus e nazistas – comentário normalmente feito pela esquerda e por críticos de Israel, e não por conservadores e defensores do estado judaico. O escritor José Saramago, o músico Roger Walters e o político trabalhista inglês Gerald Kaufman, por exemplo, são algumas das pessoas que fizeram comparações semelhantes.

Num artigo de 1995, publicado no livro “O imbecil coletivo”, ele critica Jeff Lesser, brasilianista que acabara de publicar uma pesquisa sobre o antissemitismo no Brasil durante o Estado Novo. O artigo foi retirado da reimpressão mais recente do livro a pedido de Olavo, que não explicou a escolha. Procurada, a Editora Record também não respondeu. Ao longo do texto, o livro de Lesser se torna apenas uma plataforma para Olavo criticar os judeus, cuja “culpa” seria a de terem abandonado a própria religião e remexerem “com deleitação mórbida os traumas do passado”, como o holocausto. Segundo Olavo, os judeus, “hoje”, dificilmente escapam de dois extremos:

Ou aderem ao modernismo ateu, ou, quando se apegam à religião, é para rebaixá-la a um fundamentalismo rancoroso, fanático e assassino. Quanto a esta última alternativa, cabe lembrar: ninguém neste mundo está imunizado por garantia divina contra a contaminação de uma mentalidade nazifascista: muito menos aqueles que ontem foram vítimas dela. O homem perseguido, seviciado e traumatizado tende, por uma compulsão inconsciente quase irresistível, a incorporar os traços do seu perseguidor, disfarçando-os sob um discurso contrário. Mas isto é uma forma de possessão demoníaca a que uma consciência alerta deve resistir com todas as suas forças, para não perder, em nome da revolta, o senso de justiça que dá sentido à revolta mesma.

Argumento parecido foi usado por ele numa espécie de crônica publicada em O Globo em 1997 (e republicada no livro “O futuro do pensamento brasileiro”, do mesmo ano) em que diz:

Entre o fim da I Guerra e a ascensão de Hitler, ninguém foi mais excluído e discriminado que os alemães — e vejam só a porcaria que depois eles fizeram a pretexto de enderechar entuertos. Os judeus copiam na Palestina a meleca germânica, e os pretos já começam a bater no peito com demonstrações ostensivas de orgulho racial, nostálgicos talvez do tempo em que, faraós no Egito, desciam o chicote no lombo semita.

Não é completamente claro como esses textos podem ter sido escritos por alguém que, hoje, defende Israel com tanta obstinação. Mas o contexto político nos anos 1990 no Oriente Médio talvez ajude a explicar as críticas de Olavo. Se hoje a elite política israelense se aproxima da extrema-direita, entre 1992 e 1996, o país foi governado por primeiro-ministros de centro-esquerda que fizeram avanços reais nas negociações com a Palestina. O primeiro texto foi escrito poucos meses antes do assassinato do primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin por um extremista que se opunha ao processo de paz com os palestinos. O segundo foi publicado durante o primeiro governo do linha-dura Benjamin Netanyahu – atual mandatário de Israel. Apesar de sua guinada conservadora, Netanyahu, à época da publicação do texto, dava continuidade às negociações.

O problema não é, claro, a crítica a governos de Israel, que já cometeram (e continuam cometendo) diversas violações aos direitos humanos de palestinos. Mas, de acordo com a Aliança, “fazer comparações entre políticas públicas israelenses e aquelas do nazismo” é um exemplo típico de antissemitismo. Por mais grave que possa ter sido a “meleca” a que Olavo se refere, ela é incomparável com o holocausto. Procurada pelo Intercept, a Embaixada de Israel não se pronunciou sobre os escritos do ideólogo de Bolsonaro.

Ódio a judeus não é antissemitismo?

Para Olavo de Carvalho – que não respondeu aos pedidos de comentário do Intercept – tudo isso deve ser só um detalhe politicamente correto. No artigo de 1995, ele critica o que chama de “mania investigatória que busca sinais de antisemitismo [sic] por toda parte”. Segundo ele, tão repugnante quanto o antissemitismo é a “distorção” do termo para a “manipulação das consciências”. E então oferece sua própria definição:

É também absurdo rotular indiscriminadamente como ‘preconceito’ qualquer opinião contra os judeus. Preconceito é opinião pré-conceitual, impensada, irracional. Um homem pode perfeitamente chegar a conclusões desfavoráveis aos judeus por meio de reflexão, de pensamento conceitual, mesmo que falhe e se afaste da verdade. […] Antissemitismo, no rigor da palavra, não é […] uma vaga antipatia que não se traduza em atos discriminatórios, mas sim uma ideologia que, formal e explicitamente, combata a nação judaica como tal, visando ao seu enfraquecimento ou mesmo à sua extinção […].

Ou seja, a julgar por essa formulação bizarra, alguém pode odiar judeus e o judaísmo e ainda assim não ser antissemita. Desde que a pessoa não acredite numa ideologia formal e explícita de combate à “nação judaica”, e que a opinião seja baseada em “reflexões” que não se traduzam em “atos discriminatórios”, tudo bem. Como é óbvio, Olavo não tem razão.

Atualização: 22 de novembro de 2019, 18h06
Atualizamos o texto para incluir a informação de que a Editora Record foi procurada pelo Intercept, mas não respondeu os questionamentos da reportagem.

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