Presidente do Chile é processado por crimes contra a humanidade
Foto: Mario De Fina/NurPhoto/Getty Images
Um tribunal do Chile acolheu uma ação movida contra o presidente Sebastián Piñera por sua responsabilidade em supostos crimes contra a humanidade, ocorridos durante os protestos das últimas três semanas que mataram ao menos 20 pessoas.
A ação foi movida contra o presidente pela “responsabilidade que lhe cabe, como autor, como chefe de Estado e de todos os que resultem responsáveis como autores, encobridores e/ou cúmplices de crime contra a humanidade”, destacou o documento apresentado em um tribunal em Santiago por advogados representando organizações de direitos humanos.
“Se admite a tramitação da ação interposta; remete-se ao Ministério Público”, para que se inicie uma investigação, indicou a resolução do juiz Patricio Álvarez, que iniciará agora a tramitação da ação judicial.
A ação afirma que a polícia e os militares cometeram pelo menos nove delitos – entre eles homicídios, torturas, restrições ilegítimas e abuso sexual – desde sexta-feira, 18 de outubro, quando o surto social começou e o presidente Piñera estabeleceu o estado de emergência, no qual entregou o controle da segurança de Santiago e outras cidades ao Exército.
Os protestos deixaram ao menos 20 mortos, cinco deles por ação direta de agentes do Estado. O Instituto Nacional de Direitos Humanos contabilizou até esta quarta-feira 6 1.778 feridos e cerca de 5.000 detidos.
Os protestos chegaram nesta quarta-feira ao centro comercial Costanera Center, a porta de entrada para o distrito financeiro e as áreas mais abastadas de Santiago, que até então tinham ficado à margem das manifestações que abalam o país.
Após duas semanas e meia do início dos protestos, centenas de pessoas – na maioria jovens – chegaram ao centro comercial, o maior da América do Sul e onde fica a torre mais alta da região, para protestar contra as reformas sociais e contra o governo.
Impedidos de avançar, os manifestantes se expandiram por vários pontos do bairro de Providência, porta de entrada para o setor financeiro e das regiões mais abastadas da capital chilena.
Fogueiras foram acesas, houve saques a uma farmácia e a pelo menos dois bancos e confrontos com a Polícia, além de sérios danos ao mobiliário público.
Desde cedo, a polícia isolou o local e a administração decidiu baixar as portas após o meio-dia. As lojas próximas protegeram suas vitrines com tapumes de madeira e ferro, e durante todo o dia um clima de tensão dominava todo o setor que cercava o Costanera Center.
“Estamos vivendo um nível de violência e destruição nunca antes vistos na comuna”, disse a prefeita de Providência, Evelyn Matthei.
Mensagens anônimas nas redes sociais convocaram os protestos nos bairros ricos. “Chegou a hora de ir ao leste”, área rica da capital, dizia uma das postagens, indicando que era hora de “os empresários sentirem o descontentamento do povo” e a “união das classes”.
O batalhão de choque usou jatos d’água e gás lacrimogêneo para dispersar os manifestantes que se concentraram em vários pontos ao redor do centro comercial, um símbolo do progresso econômico de Santiago.
“As pessoas estão bastante tristes e com medo em relação à volta à normalidade no país”, disse Andrea Ortega, advogada de 43 anos que deixou seu escritório para buscar os filhos mais cedo do que o habitual na escola por medo de tumultos.
Para Arturo Donoso, de 40 anos, “é triste ver o país assim. A cidade está apagada e acho que todos entendemos que há uma demanda justa. Não é porque moramos aqui que não sabemos disso”.
Horas depois, milhares de manifestantes voltaram a se concentrar na Praça Itália, principal cenário dos protestos desde que começaram, onde foram registrados incidentes isolados.
Para esta quarta-feira, também foram convocados protestos diante da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) das Nações Unidas, cuja sede no bairro de Vitacura representa um dos maiores ícones arquitetônicos da cidade.
“Isto tinha que acontecer e me comove que sejam nossos netos os que tenham tido a postura de lutar por um Chile que não merece essas injustiças”, relatou com um megafone Rebeca Pemjean, aposentada de 64 anos, exilada pela ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).
Enquanto isso, na comuna de Renca, bairro popular do norte de Santiago, vinte pessoas atacaram um quartel da polícia, deixando cinco agentes feridos. Caminhoneiros e motoristas bloquearam algumas rodovias em protesto contra os pedágios urbanos.
‘Nada a esconder’
Juntamente com os protestos, há crescentes relatos de violações de direitos humanos por parte das forças de ordem.
Na terça-feira, dois alunos do Ensino Médio foram feridos com balas de borracha por policiais que entraram no prédio da escola onde estudam. Um dos agentes de segurança foi detido e será acusado do crime de coação ilegítima, informou a imprensa local.
O Ministério Público informou que 14 policiais serão acusados de “tortura” contra duas pessoas, uma delas menor de idade, durante o estado de emergência decretado por Piñera e em vigor nos primeiros nove dias de protestos.
Diante esta onda de denúncias, Piñera afirmou nesta quarta-feira: “Estabelecemos total transparência nos dados (sobre a violência policial), porque não temos nada a esconder”.
O presidente disse que, com a mesma contundência, serão punidos os manifestantes que causaram distúrbios violentos, saquearam e danificaram mais de 70 estações de metrô no meio dos protestos, e que isso será feito com “qualquer excesso que tenha sido cometido” no uso da força.
A Justiça anunciou, por sua vez, ter acolhido uma ação para investigar o presidente Piñera por suposta responsabilidade em crimes contra a humanidade cometidos no contexto dos protestos sociais.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) anunciou que fará uma visita ao país, juntando-se à missão do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, que já está no Chile. Nesta quarta, várias organizações internacionais, incluindo a Organização Mundial contra a Tortura, chegaram ao país para investigar as denúncias de excessos na repressão aos protestos.
Ao lado de vários ministros na sede presidencial de La Moneda, Piñera assinou um projeto de lei que eleva – subsidiado pelo Estado – o salário mínimo para 467 dólares (350.000 pesos chilenos), conforme a agenda de medidas sociais para aplacar a revolta popular.