Assista vídeo ilegal da Secom contra Petra
Foto: Reprodução
Secretaria de Comunicação publicou mensagens e vídeo rebatendo falas da cineasta a TV americana, chamando-a de “militante anti-Brasil”. Bolsonaro havia ironizado indicação de “Democracia em Vertigem” ao Oscar.
Nos Estados Unidos, a cineasta Petra Costa assumiu o papel de militante anti-Brasil e está difamando a imagem do País no exterior. Mas estamos aqui para mostrar a realidade. Não acredite em ficção, acredite nos fatos. pic.twitter.com/NLnf8gA87c
— SecomVc (@secomvc) February 3, 2020
Para atingir também o público internacional, foram feitas publicações em inglês.
“É inacreditável que uma cineasta possa criar uma narrativa cheia de mentiras e previsões absurdas para denegrir uma nação só porque não aceita o resultado das eleições”, diz uma das postagens em inglês.
It is unbelievable that a filmmaker can create a narrative full of lies and absurd forecasts in order to denigrate a nation just because she does not accept the result of elections.
— SecomVc (@secomvc) February 3, 2020
“Sem o menor senso de respeito por sua terra natal e pelo povo brasileiro, Petra disse em um roteiro irracional que a Amazônia se tornará uma savana em breve e que o presidente Bolsonaro ordena o assassinato de afro-americanos e homossexuais”, diz outro texto em inglês.
Depois da entrevista, usuários começaram a disseminar no Twitter a hashtag #PetraCostaLiar (Petra Costa mentirosa, em português) com o objetivo de desacreditar as declarações da cineasta. Por outro lado, artistas e nomes da esquerda apoiaram Costa.
Num vídeo de quase três minutos publicado pela Secom no Twitter, falas de Costa na entrevista são intercaladas com carimbos de fake news e mensagens em defesa do governo.
Em um dos trechos, Costa cita que Bolsonaro se aproveitou de uma onda evangélica e antidireitos LGBT para se eleger e que também é contrário a pessoas de cor. Depois, um carimbo vermelho de fake news é estampado no vídeo, seguido pela mensagem: “o governo federal não fez nenhuma ação contra os direitos de minorias”.
Mesmo sem nenhum política oficial contra minorias, Bolsonaro por várias vezes já fez declarações polêmicas quanto à comunidade LGBT. Em setembro, por exemplo, em transmissão feita pelo Facebook, ele falou sobre filmes que tiveram o financiamento barrado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) por terem temática LGBT.
“Olha, a vida particular de quem quer que seja, ninguém tem nada a ver com isso. Mas fazer um filme, ‘Afronte’, sobre negros homossexuais no DF, confesso que não dá pra entender. Então mais um filme que foi pro saco”, declarou.
Também em agosto, em um trio elétrico na Marcha para Jesus, em Brasília, ele se posicionou contrário a famílias homoafetivas. “Apresentem uma emenda à Constituição e modifiquem o artigo 226, que lá está escrito que família é homem e mulher. E mesmo mudando isso, como não dá pra emendar a Bíblia, eu vou continuar acreditando na família tradicional”, disse.
Em outro trecho, da entrevista, a cineasta disse que, desde que Bolsonaro foi eleito, o índice de homicídios pela polícia do Rio cresceu 20%. No vídeo da Secom, um novo carimbo de fake news é estampado e o texto afirma: “o número de homicídios no país teve uma queda de 20%”.
A comparação, no entanto, não é correta, já que contrapõe dados nacionais de homicídios em geral com o índice de homicídios cometidos por policiais no Estado do Rio de Janeiro. Em 2019, a polícia do Rio matou 1.810 pessoas, 18% a mais que em 2018, segundo dados do Instituto de Segurança Pública. Ao mesmo tempo, o total de homicídio registrados no país, de 3.995, é o menor desde 1991.
Quando Costa cita que o governo do Rio de Janeiro matou mais pessoas em 2019 do que a polícia dos Estados Unidos, o vídeo da Secom rebate alfinetando o antigo aliado Wilson Witzel, governador carioca: “Cabe ao governo do estado do Rio de Janeiro responder pela ação de suas polícias.”
Segundo levantamento divulgado pelo jornal Washington Post, 970 pessoas foram mortas em 2019 pela polícia nos Estados Unidos – um pouco mais do que a metade dos homicídios cometidos por policiais no estado do Rio de Janeiro.
Em seguida, o vídeo da Secom mostra um trecho da entrevista em que Costa afirma que Bolsonaro “incentiva fazendeiros a invadir terras indígenas e queimar a Floresta Amazônica”. Mais uma vez, a Secom rebate: “para o presidente Jair Bolsonaro qualquer invasão de terra é terrorismo”. Quando cita que a “Amazônia pode virar uma savana”, Costa é rebatida com o argumento de que “o compromisso do governo federal com o meio ambiente já foi reforçado pelo próprio presidente Jair Bolsonaro em discurso na ONU”.
Embora Bolsonaro nunca tenha dito de forma explícita que terras indígenas devam ser invadidas, ele já deu várias declarações contrárias a elas, criticou o trabalho de ONGs que atuam na Amazônia e recusou recursos estrangeiros para financiar o Fundo Amazônia.
Além disso, por vários meses, o desmatamento na Amazônia bateu recordes em 2019. Dados divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) em novembro, por exemplo, mostraram que a devastação do bioma cresceu 104% em relação ao mesmo mês de 2018.
Em entrevista ao site Conjur, o jurista Lenio Streck disse que o uso do perfil oficial da Secom para atacar a cineasta deveria ser investigado pelo Ministério Público.
“O governo não pode usar a máquina pública desse modo. Por óbvio quebra o princípio da impessoalidade. Ora, o governo pessoalizou. Abriu guerra contra uma pessoa que, paradoxalmente, representa o Brasil no Oscar. O governo não só torce contra a cineasta, como usa da máquina da Secom para desacreditá-la. Caberia uma intervenção do Ministério público por desvio de função da Secom”, declarou ao site.
Também em entrevista ao Conjur, o constitucionalista Eduardo Mendonça disse que o governo chegou perto de quebrar o princípio da impessoalidade, mas não o fez.
“Se fosse uma campanha de ataque pessoal, eu não teria dúvida em classificar como violação à impessoalidade. Por exemplo, se o foco da crítica fosse a pessoa da cineasta ou a qualidade artística. No caso, o documentário afirma que o atual governo foi eleito de forma ilegítima por um processo de degradação institucional. É direito dela achar isso e afirmar. Mas acho que o governo também pode se posicionar. É um assunto público, atinente ao processo político, à legitimidade do governo e até a determinadas políticas públicas”, argumentou.
O documentário de Petra Costa Democracia em Vertigem aborda a ascensão e queda do PT e a crescente polarização entre esquerda e direita no país. No documentário, Costa mescla imagens históricas, trechos de reportagens de TV e cenas dos bastidores do Planalto, do impeachment de Dilma Rousseff e da prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com relatos pessoais.
No dia 14 de janeiro, logo após o longa ser anunciado como concorrente à estatueta, Bolsonaro disse que “para quem gosta do que o urubu come, é um bom filme”, ironizando a nomeação. Questionado pela imprensa se havia assistido o documentário, respondeu: “Eu vou perder tempo com uma porcaria dessas?”
O longa brasileiro concorre com Indústria Americana, The Cave, For Sama e Honeyland. O documentário brasileiro, incluído na lista dos melhores do ano do New York Times, foi lançado em junho passado pela Netflix.