Bolsonaro desconfia até da sombra
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Na mitologia grega, Urano, deus supremo surgido após o caos, uniu-se a Gaia para gerar uma descendência. Porém, temeroso da traição dos filhos, os Titãs, enterrou-os no ventre da esposa. “Aqui mando eu e ninguém mais!”, dizia. Gaia, farta da tirania, propôs a um dos filhos, Cronos, que depusesse Urano e governasse o universo. Munido da foice dada pela mãe,
Cronos castrou o progenitor e imperou sobre seu sangue. Cronos, como o pai, bradava: “Aqui mando eu e ninguém mais!”. Sabendo que teria filhos, virtuais traidores, ordenou à mãe, Reia, que lhos entregasse para os devorar, um a um. Desse fado se salvou apenas Zeus, que a mãe ardilosamente substituiu por uma pedra, engolida sem que o genitor notasse. Mais tarde, também Zeus se voltou contra o pai, fê-lo regurgitar os irmãos e, ao lado deles, expulsou Cronos – que retornaria para a fatídica guerra dos Titãs, quando foi derrotado pelos deuses do Olimpo e enviado novamente às profundezas – desta feita não por seu pai, mas por seu filho.
O bolsonarismo devora os seus próprios membros
A paranoia conspiratória desgraçou deuses, suscitando ressentimento e vingança. Cronos acreditou escapar do destino infligido ao pai, devorando os filhos. Não contava, porém, com o embuste da esposa, que lhe custou a derrota. Não é mesmo possível controlar tudo; mais sábio é não cevar inimigos, mormente dentre os tão próximos.
O Brasil também tem seu mito. Como deuses gregos, Bolsonaro alimenta paranoias conspiratórias sobre traições, sendo levado a devorar não os filhos (ao menos por ora), mas todo e qualquer aliado visto como ameaça. O problema das paranoias é que sugerem perigos até quando não existem, gestando inimigos onde havia amigos, atraindo mágoa e desforra. Assim, geram profecias autocumpridas, em que o oponente imaginário é transformado em antagonista real por ações que a imaginação provoca.
Ao final de janeiro, perícia da Polícia Federal atestou que mensagens depreciativas sobre o presidente, atribuídas em maio de 2019 ao general Carlos Alberto dos Santos Cruz, foram forjadas. Embora a prudência recomendasse suspeitar disso desde o princípio, Bolsonaro cismou com seu secretário de Governo, preferiu crer na montagem e, incitado pela prole, despachou o general. Ainda em janeiro, outro capítulo das altercações entre presidente e ministro da Justiça. Cabreiro com a popularidade e as ambições de Sergio Moro, Bolsonaro ensaiou mutilar o ministério em prol do qual o ex-juiz abandonou a carreira de magistrado, seduzido pelo poder que teria ao acumular as atribuições de segurança pública. Percebendo que o passo em falso poderia não apenas lhe enfraquecer, mas robustecer ainda mais o subordinado-aliado-adversário, Bolsonaro recuou. Ato contínuo, voltou-se a discutir a indicação de Moro para o Supremo Tribunal Federal. Não que ministros do STF estejam impedidos de ingressar na política eleitoral, deixando a corte (e talvez a usando como novo trampolim), mas é uma aposta que o presidente pode arriscar.
Embora as escaramuças com Moro ocorram desde o início, com o presidente volta e meia lhe desautorizando com a frase dos deuses paranoicos – “Quem manda sou eu!” -, os conflitos intestinos do bolsonarismo vão além disto. Antes mesmo da posse, o aliado de primeira hora, Magno Malta, foi escanteado na formação da equipe. Com menos de dois meses de gestão, foi-se Gustavo Bebianno, estrategista principal das articulações eleitorais do mito, defenestrado da Secretaria-Geral da Presidência por estímulo do filho 02, Carlos.
Bebianno foi o primeiro membro do gabinete a cair pela teia de intrigas, mas não o último enredado por ela. Além do já mencionado Santos Cruz, quatro meses depois, também o vice-presidente, Hamilton Mourão, virou alvo constante das invectivas de Bolsonaro e filhos – ao ponto de ter em novembro o presidente dito ao “príncipe”, Luiz Phillippe de Orleans e Bragança, que o vice deveria ser ele, “e não esse Mourão aí”.
Em meio a tais confusões, Bolsonaro se viu às turras com o PSL, partido pelo qual se elegeu. Menos de dois meses após a agremiação dirigida por Luciano Bivar ter expulsado por unanimidade mais um neodesafeto presidencial, Alexandre Frota, o servil Bivar virou alvo, pois estaria “queimado pra caramba”. Deflagrou-se acirrada disputa pelo controle da legenda (com seus polpudos recursos), culminando na saída de Bolsonaro para criar sua (e só sua) Aliança pelo Brasil.
Vale notar que, além de Bivar, um dos que celebraram a expulsão de Frota foi o outrora aliado, senador Major Olímpio. Porém, no meio tempo, também Olímpio se desentendeu com a família presidencial – 01, 02 e 03. E quem briga com os filhos vira desafeto do pai e é expulso do Olimpo. Ipso facto, a ex-líder do governo no Congresso, Joice Hasselmann, desgostosa com a expulsão de Frota, também se tornou desavinda da família – assim como tantos outros parlamentares do partido, dentre os quais o então líder do PSL, Delegado Waldir – que fez o gesto de pistolinha ao lado de Bolsonaro na assinatura do decreto das armas. Depois, jurou “implodir o presidente”, segundo Waldir, um “vagabundo”.
Outro imolado em público foi o outrora presidente do BNDES, Joaquim Levy. Após anunciar, em junho passado, que a cabeça do funcionário estava a prêmio, Bolsonaro afirmou: “Eu já estou por aqui com o Levy”. Um dia depois foi apresentada sua demissão e ele se juntou ao ex-presidente dos Correios, general Juarez Cunha, na lista de expurgados.
Na visão do chefão, Levy se negou a abrir a “caixa-preta do BNDES”. Para cumprir tão hercúlea missão, nomeou Gustavo Montezano, amigo de balada do filho 03, Eduardo. Pois que, após sete meses e R$ 48 milhões gastos na auditoria, o parça de 03 anunciou nada encontrar. Insatisfeito com a busca inútil, de que não desistia, Bolsonaro se referiu a Montezano como “o garoto lá”. Cronos, deus do tempo, já conta os dias do infante no cargo. Claro, sem esquecer de Onyx Lorenzoni, aliado de primeira hora, fritado como se fosse um hambúrguer do Eduardo, desmembrado como o Cavaleiro Negro de Monty Python – que não obstante, teima em lutar.