Bolsonaro usa igrejas e cartórios para criar partido

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Foto: Reprodução

Como reunir a tempo da corrida municipal de outubro quase meio milhão de assinaturas necessárias para a criação do novo partido do presidente Jair Bolsonaro?

Recorrer a parcerias com igrejas evangélicas e cartórios estão entre as estratégias da Aliança pelo Brasil.

Mas questionamentos judiciais e mesmo falta de organização interna, como pastores que se dispuseram a mobilizar suas congregações mas ainda não foram procurados por ninguém, podem atrapalhar o que seus dirigentes definem como corrida contra o tempo.

O próprio Bolsonaro já admitiu que talvez não seja possível validar o quórum mínimo de filiados até 4 de abril, prazo legal para disputar as eleições. Não que jogar a toalha seja opção.

“Vocês viram um grande ônibus estacionado ali, escrito Aliança pelo Brasil? Tá meio escuro, mas tenho certeza que você viu”, diz o reverendo Emerson Patriota na paranaense Igreja Presbiteriana Central de Londrina.

“Este futuro partido, estamos profetizando aí, precisa de algo que se chama apoiamento”, continua o pastor, que logo “desafiará” fiéis a dar uma das 492 mil assinaturas que a Justiça Eleitoral exige para parir a sigla.

O veículo traz fotos de Bolsonaro e do deputado Filipe Barros (PSL-PR), discípulo da igreja. E é vapt-vupt, garante Patriota: “Temos aqui o pessoal do cartório para facilitar todo esse processo, […] eles já estão aqui para nos abençoar”.

O Ministério Público pediu na semana passada que o Tribunal de Contas da União investigue se há engajamento de tabeliães, que prestam um serviço público, na causa.

O subprocurador-geral Lucas Rocha Furtado vê potencial irregularidade no amparo a um partido “que, como se sabe, vem sendo organizado pelo mandatário maior da nação, donde se exigiria maior comprometimento com a moralidade e impessoalidade”.

Furtado destaca o estatuto do CNB (Colégio Notarial do Brasil), entidade que representa tabeliães: lá consta ser proibido apoiar, “ativa ou passivamente, quaisquer manifestações de caráter político”.

O CNB rebate: a Corregedoria Nacional de Justiça já afirmou não haver elementos suficientes para apontar uma “atuação concertada de apoiar institucionalmente” a Aliança. Qualquer suspeita de favorecimento “deve ser apurada individualmente”.

Filipe Barros aponta “cristofobia” em quem critica a articulação, até porque “cristão que se preze não pode ser esquerdista”. O evento em Londrina “foi ótimo, centenas de fichas assinadas”, disse.

À Folha o deputado afirmou que vem recomendando a colegas: corram vocês também atrás de igrejas. Ele próprio entrou em contato com pastores, vários deles receosos em trazer a campanha pró-Aliança aos templos. “Muitos precisam de orientação até jurídica, para tranquilizá-los.”

Barros diz ter conversado com três advogados para assegurar que, “juridicamente falando, não houve impedimento algum” no ato da Igreja Central, “o primeiro de muitos que faremos em outras denominações”.

O advogado Luiz Eduardo Peccinin, autor do livro “Discurso Religioso na Política Brasileira”, concorda. Ele não vê vedação a ações do gênero, “especialmente se não tiver qualquer coação à colheita de assinaturas”. O que a legislação barra é a “propaganda eleitoral em templos e o financiamento de candidatos por entidades religiosas”.

Há quem veja margem para a judicialização do tema. No mesmo ofício em que questiona se há cartórios engajados na gênese da Aliança, o procurador diz que a ajuda dada pelas igrejas pode ser caracterizada como doação eleitoral ilegal, pois “está fornecendo mão de obra (mensurável em termos econômicos) e estrutura física dos templos em prol de uma determinada agremiação política”.

O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) diz que “não se manifesta sobre questão hipotética ou concreta que pode vir a ser examinada pela corte”.

O bispo e ex-deputado Robson Rodovalho, líder da Sara Nossa Terra, quer mais é mobilizar sua rede de mais de 1 milhão de fiéis. Só não foi procurado ainda. Muitas congregações, como a dele, colocaram-se de prontidão para alavancar a Aliança, mas ninguém as contatou até agora.

Apoio no segmento Bolsonaro tem. O que falta é unanimidade sobre a melhor forma de amparar a nova legenda.

Na última terça (28), o advogado Alexandre Cavallazzi enviou uma interpelação extrajudicial à Igreja Presbiteriana do Brasil, que frequenta em Santa Catarina.

Ele diz à Folha que assim o fez por achar que uma igreja “não é local adequado” para fins políticos. “Quando um pastor desafia, o pessoal deixa de raciocinar. Não acho correto usar a autoridade que tem sobre fiéis para assinar um documento de tamanha importância.”

Em nota, a igreja disse que não é apolítica, mas “é apartidária e em nenhum momento apresentou apoio a qualquer partido”.

Movimentar a rede de aliados é preciso, mas entraves burocráticos preocupam a Aliança. Sua tesoureira nacional, a advogada Karina Kufa, afirma que eles estão dentro da meta de assinaturas, mas reconhece não ter 100% de certeza de que elas estarão validadas a tempo das eleições de 2020 “devido à burocracia na Justiça Eleitoral”.

Na tentativa de inibir fraude, recente resolução do TSE impõe rigoroso rito para novos partidos. A ficha para cadastro tem que apresentar a assinatura do futuro filiado e de uma testemunha. Qualquer falha pode invalidar o registro.

Também é checado se o apoiador está associado a outro partido. Se sim, seu endosso será invalidado. O problema: muitos bolsonaristas estão cadastrados no PSL, pelo qual o presidente chegou ao Planalto. Eles devem ir pessoalmente à Justiça Eleitoral apresentar o formulário de desfiliação.

Na internet, Kufa chamou de idiota a exigência de desligamento. “Mais uma dificuldade posta para criar partidos.”

Já há conversas com partidos existentes que podem acolher políticos bolsonaristas caso a Aliança não se viabilize para o pleito, diz o líder da bancada do PSL na Assembleia Legislativa do Rio, Dr. Serginho. “Vou para o partido que Bolsonaro indicar.”

Na manhã deste sábado (01), no Rio, a Aliança pelo Brasil realizou evento de coleta de assinaturas. Sob forte calor, centenas de pessoas estiveram no Campo de Santana, no centro da cidade, para apoiar a criação do partido do presidente.

Protagonista de um vídeo convocando eleitores para o evento, o senador Flávio Bolsonaro apareceu apenas na forma de um cartaz, que atraiu fila de apoiadores (quase todos vestidos de amarelo) para fotos ao lado das figuras políticas ali representadas. Disputou a atenção com o deputado federal Hélio Lopes, sempre cercado por uma pequena multidão em busca de selfies ou um recado por live.

O prefeito do Rio, Marcelo Crivella (Republicanos), fez uma rápida aparição logo no início da manhã. Às vésperas da eleição municipal, ele tem se aproximado de Bolsonaro em busca de apoio para se reeleger.

Nos discursos, houve críticas ao Congresso, chamado de “inimigo do país”, segundo o deputado federal Daniel Silveira. Já políticos do PSL foram chamado de “oportunistas e traidores”, segundo a maior parte dos oradores. Assim como imprensa, tratada como “lixo”, nas palavras do deputado estadual Márcio Gualberto (PSL-RJ).

O processo de criação de uma legenda envolve várias etapas. São elas:

Elaboração de um programa e estatuto com assinatura de pelo menos 101 fundadores, que sejam eleitores residentes no Brasil e estejam com direitos políticos plenos

Registro em cartório em Brasília e publicação do estatuto no Diário Oficial da União

Registro de criação no TSE, em até 100 dias

Obtenção do apoio equivalente a 0,5% dos votos válidos da última eleição geral para a Câmara, distribuídos em no mínimo um terço dos estados, com um mínimo de 0,1% do eleitorado em cada um deles; o prazo é de dois anos

Obtenção do Registro de Partido Político em pelo menos um terço dos TREs do país e registro da Executiva Nacional no TSE

Quanto tempo leva todo o processo de criação?

Em média, cerca de três anos e meio. O recorde foi do PSD, do ex-ministro Gilberto Kassab, que levou um pouco mais de seis meses.

Para participar de uma eleição, a legenda precisa ser criada até seis meses antes do pleito.

Qual a parte mais demorada?

Geralmente é o processo de recolhimento e certificação das assinaturas, que são conferidas pela Justiça Eleitoral (para verificar, por exemplo, se não há duplicações). É comum que os partidos recolham mais assinaturas do que o necessário para compensar as que são desqualificadas.

Quantas assinaturas são necessárias?

Levando em conta as eleições de 2018, 0,5% dos votos válidos para a Câmara equivalem a 491.967 assinaturas, que precisam ser distribuídas por ao menos nove estados. Além disso, é necessário que, em cada estado, haja um mínimo de firmas equivalentes a 0,1% dos eleitores que votaram.

Normalmente as legendas costumam apresentar um número próximo de 1 milhão de assinaturas.

É possível recolher assinaturas digitais, como quer Bolsonaro?

O TSE afirmou que sim, desde que as assinaturas sejam validadas por meio de certificação digital. Isso, na prática, não torna o processo muito mais simples do que o recolhimento manual.

A certificação foi criada em 2001 e se baseia no uso de chaves com criptografia para garantir a segurança do registro. Segundo dados da Associação Nacional de Certificação Digital (ANCD), há atualmente no Brasil 3,78 milhões de pessoas físicas que possuem certificado digital (2,58% do eleitorado).

Para obter a certificação, paga-se, em média, de R$ 50 a R$ 70 por ano. Os certificados valem por períodos de 1 a 5 anos, dependendo da modalidade. De acordo com a ANCD, há 17 autoridades certificadoras, entre entidades e empresas públicas e privadas.

Um novo partido tem acesso a recursos públicos?

Sim, mas apenas a uma parcela pequena do fundo eleitoral (que financia as eleições). Do total (foram R$ 1,8 bilhões em 2018), 2% são distribuídos igualmente entre as legendas. O restante é repartido de acordo com o desempenho nas eleições Legislativas. Sem participar do último pleito, uma nova legenda não entra na conta de 98% dos recursos.

Em relação ao fundo partidário (que financia o funcionamento dos partidos), a lei condiciona o acesso ao desempenho nas eleições para a Câmara dos Deputados. Assim, siglas que não disputaram não têm direito a esses recursos (exceção no caso de fusão ou incorporação de partidos).

E quanto ao tempo de TV durante as eleições?

O tempo de TV também é limitado aos partidos que tiveram um desempenho mínimo nas últimas eleições. No caso de cargos majoritários (senadores, prefeitos, governadores e presidente), porém, as legendas podem formar coligações, e o que conta é a bancada que os seis maiores partidos do grupo elegeram para a Câmara.

Políticos podem se filiar a um novo partido sem perder o mandato?

Sim, a filiação a uma legenda recém-criada está na lista de situações que permitem a vereadores e deputados deixar a sigla pela qual foram eleitos sem perder o cargo.

Prefeitos, senadores, governadores e presidente, por sua vez, podem mudar de legenda em qualquer situação sem sofrer perda do mandato.

Folha