Bolsonaro vai promover farra de gastos em ano eleitoral
Foto: Rafaela Felicciano / Metrópoles
A transferência de R$ 649 milhões via emendas parlamentares levantou um temor em órgãos de controle de que o Congresso passou um “cheque em branco” para prefeitos e governadores em pleno ano eleitoral. Pela primeira vez, a União vai destinar recursos, por indicação de deputados e senadores, diretamente para Estados e municípios usarem livremente sem uma norma clara de como esse dinheiro será fiscalizado.
Emendas são indicações feitas por parlamentares de como o governo deve gastar parte do dinheiro do Orçamento. Elas incluem desde obras de infraestrutura, como a construção de uma ponte, por exemplo, até valores destinados a programas de saúde e educação. Até 2019, as transferências dos recursos precisavam obrigatoriamente ser intermediadas pelo ministério relacionado – dinheiro para construir uma creche, por exemplo, dependia de liberação do Ministério da Educação.
No entanto, no fim do ano passado o Congresso criou uma exceção e aprovou uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que autoriza deputados e senadores destinarem parte dos recursos de suas emendas parlamentares diretamente para Estados e municípios, modalidade chamada de “transferências especiais”. Ou seja, a verba pode ir direto aos cofres de prefeituras e governos estaduais sem passar pelo “filtro” dos ministério. Assim, o dinheiro chegará mais rápido e poderá ser aplicado, por exemplo, em obras prometidas por prefeitos que buscarão a reeleição neste ano. Do total, 60% deve ser transferido ainda no primeiro semestre, ou seja, antes das disputas municipais.
Os repasses vão pular etapas necessárias para outros tipos de emendas parlamentares, como verificação técnica de contratos entre prefeitura e governo federal e prestação de contas para órgãos como Tribunal de Contas da União (TCU) e Caixa.
Na ausência do “carimbo”, a única exigência é que 70% do valor seja usado nas chamadas despesas de capital, como obras e compra de máquinas, e não aplicado em pagamento de servidores e encargos da dívida. O TCU ainda estuda se poderá fazer auditorias nesses repasses, mas não há uma conclusão.
“Estamos aguardando porque trabalhamos em cima da norma vigente. O Brasil precisa virar essa página de tirar proveito do dinheiro público”, disse o presidente do TCU, José Mucio Monteiro, ao Estadão/Broadcast Político. Técnicos da corte de contas estão preocupados com a possibilidade de esses repasses abrirem margens para desvios de dinheiro público
Inicialmente, a proposta previa a fiscalização por tribunais de contas locais. Após reações contrárias, o trecho foi retirado e a medida foi aprovada e promulgada sem qualquer menção a como o dinheiro será controlado.
A emenda pode ter ficado pior que o soneto, dizem técnicos do Congresso e integrantes de órgãos de controle. Como a medida estabelece que os recursos “pertencerão” aos Estados e municípios, a prestação de contas poderia ser feita nos relatórios encaminhados anualmente aos órgãos de controle locais, mas nem isso está claro.
O temor da falta de transparência surgiu, justamente, porque a Constituição ficou sem qualquer menção à fiscalização específica dessas transferências. A PEC até prevê que os municípios e Estados poderão fazer contratos com órgãos como a Caixa para acompanhar a execução dos recursos, mas não há obrigatoriedade.
Embora o Congresso tenha criado a possibilidade de parlamentares enviarem recursos diretamente para Estados e municípios, poucos deputados e senadores optaram pela modalidade no ano passado. Dos R$ 9,5 bilhões, uma fatia de R$ 649,3 milhões (apenas 7% do total) foi indicada para transferências diretas por 141 congressistas.
Segundo técnicos ouvidos pela reportagem, o temor de como o dinheiro será aplicado e a falta de transparência para os próprios parlamentares impediu que mais deputados e senadores fizessem emendas nesse formato.
Relator da PEC, o senador Aécio Neves (PSDB-MG) vai destinar R$ 5,3 milhões para o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (MG), aplicar como quiser. Minas será o Estado mais beneficiado neste ano, com R$ 84,6 milhões. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), fará o mesmo com R$ 7,5 milhões para o Amapá, seu reduto de origem. Conforme o Estadão/Broadcast Político revelou em dezembro, as emendas foram indicadas nessa modalidade antes mesmo da aprovação da proposta.
Teve até quem criticou a PEC, mas, antes mesmo de votá-la, indicou emendas sem carimbo. Dos R$ 15,9 milhões a que tem direito em 2020, o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) vai destinar R$ 3,8 milhões para Sergipe na nova modalidade. Para ele, a essência da proposta é positiva ao desburocratizar o repasse, mas falha em não prever a fiscalização. Ele promete apoiar um novo projeto para devolver ao TCU o poder de fazer o pente-fino.
O Ministério da Economia lançou uma plataforma para que seja feito o acompanhamento destas transferências. Os parlamentares e quem receberá o recurso poderão acompanhar a tramitação das emendas. A prestação de contas na plataforma, porém, será opcional.
“Achamos que, apesar de não haver uma normatização obrigando, haverá uma conjuntura de interesses do município dar transparência e o parlamentar querer acompanhar”, afirmou a diretora do Departamento de Transferências da União, Regina Lemos.
Os parlamentares pediram que a plataforma permita ao prefeito dizer onde o dinheiro será aplicado. A declaração dependerá da boa vontade. “O contato do município é com o parlamentar. Então, o parlamentar vai falar: eu quero essa categorização para saber onde foram aplicadas as minhas emendas. É uma conversa muito entre eles, a União está tentando operacionalizar e dar transparência”, disse a diretora.
Questionado pela reportagem sobre quem fiscalizará a aplicação do dinheiro dessas transferências, o ministério respondeu que “a fiscalização de recursos públicos cabe aos órgãos de controle observando suas respectivas esferas de competência”. E a dúvida é justamente esta: qual órgão é responsável? Uma pergunta ainda não respondida e que vem levantando dúvidas no governo, no Congresso e nos órgãos de controle.
No Senado, o Podemos deve apresentar uma proposta para regulamentar a fiscalização e devolver ao Tribunal de Contas da União (TCU) e ao Ministério Público Federal o poder de fazer o pente-fino na aplicação.
O compromisso em votar essa medida foi colocada como condição para o partido não votar contra a PEC no ano passado. “Não dá para pontuar, por falta de provas, mas sabe-se que há má aplicação dos recursos orçamentários por intermédio das emendas parlamentares. Estamos vendo no Congresso tentativas de afrouxar regras com o pretexto da agilidade”, comentou o líder do Podemos no Senado, Alvaro Dias (PR).
COMO SÃO AS EMENDAS ‘CARIMBADAS’: (R$ 8,8 bilhões)
1. Deputado ou senador indica, no projeto do Orçamento, o destino de recursos para uma ação ou obra específica (por exemplo: a construção de uma creche ou dinheiro para comprar suprimentos em um determinado hospital).
2. A prefeitura ou o Estado que vai receber o recurso procura o ministério relacionado para que a transferência seja efetivada.
3. Na maior parte dos casos, é necessário que a prefeitura ou o Estado firme um convênio com o governo federal para receber o recurso. Os repasses são intermediados pela Caixa Econômica Federal e o ministério cobra uma prestação de contas detalhadas. A fiscalização fica a cargo do Tribunal de Contas da União (TCU).
COMO FICAM AS EMENDAS ‘SEM CARIMBO’: (R$ 649 milhões em 2020)
1. Deputado ou senador indica, no projeto do Orçamento, o destino de recursos para prefeituras ou Estados sem vinculação específica.
2. O recurso é repassado do Tesouro diretamente para o caixa dos prefeitos e governadores, que podem escolher como utilizar o dinheiro.
3. O chefe do Executivo local pode ou não informar, no sistema do governo para controle dos recursos, como usou o recurso enviado via emenda. Mas isso será opcional.