Crivella declara guerra a Carnaval carioca

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Foto: Leo Pinheiro/Valor

A relação com a festa que define a identidade do carioca é conflituosa desde o início do mandato, mas o prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) dobrou a aposta contra o mundo do carnaval, mesmo no último ano de governo em um cenário de reeleição tido como difícil. Crivella zerou as verbas para as escolas de samba do grupo especial e reforçou os laços de antipatia e desamor, que serão entoados contra ele por blocos de rua e no palco principal da Avenida Marquês de Sapucaí.

Crivella antecipou em meio ano a campanha negativa da oposição que vê nele um inimigo do carnaval e dos valores da cidade. Mas a postura também agrada ao crescente eleitorado conservador em que políticos, muito além do prefeito do Rio, cultivam sua base social. Vide a publicação de Jair Bolsonaro, pelo Twitter, no ano passado, em que o presidente critica a festa ao mostrar o vídeo de um folião urinando sobre outro (“golden shower”).

Bolsonaro depois recuou, mas Crivella, eleito com o voto evangélico, faz do conflito sinalização constante para seu eleitorado. Durante o mandato, nunca assistiu aos desfiles no Sambódromo. Em três dos quatro anos faltou à cerimônia de entrega da chave da cidade ao Rei Momo. Em meio ao clima de pré-carnaval, o prefeito participa amanhã de um megaevento evangélico, ao lado de Bolsonaro, na Enseada de Botafogo, na zona sul carioca, concorrendo com os blocos que já se espalham pela cidade.

O esgarçamento na relação também fica claro do outro lado. Escolas de samba e blocos de rua mostram insatisfação com a atual administração municipal. A depender do interlocutor, a postura da Prefeitura do Rio com o carnaval pode ser considerada “um equívoco”, como define Leandro Vieira, carnavalesco da atual campeã Mangueira. Luís Carlos Magalhães, presidente da Portela, afirma que “o carnaval não vai acabar”, acrescentando que, para ele, o próximo prefeito, “se tiver um mínimo de compromisso com a cidade, vai ajudar o carnaval”. Mas tem preocupação: “Se ele [Crivella] se reeleger, complica de vez.”

O prefeito reveste seu pouco-caso com motivações socioeconômicas. Em entrevista ao Valor, compara o Sambódromo a uma fazenda com a presença do negro escravizado nos ciclos do café e da cana-de-açúcar. “Eles [negros] nunca participaram da riqueza mas construíram a riqueza desse país. O que eles deixaram de herança para nós? O samba. Aquilo ali [a Marquês de Sapucaí] é o cafezal. Aquilo ali é a cana-de-açúcar, onde as pessoas fazem o espetáculo e a grana vai para a casa-grande. Disso eu não participo”, critica. Bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus – denominação neopentecostal conhecida por arrebanhar fiéis em áreas pobres prometendo prosperidade -, o prefeito questiona a função social das escolas de samba. “Eu pergunto: Mangueira é campeã de carnaval; conserta um barraco no morro? Fazem uma creche? Salgueiro é campeão – foi várias vezes -; melhora o morro? Zero. Às vezes, as pessoas pagam pela fantasia”, diz.

O argumento é duramente criticado por quem vive o dia a dia das quadras e barracões. O carnavalesco da Mangueira afirma que o prefeito “infelizmente” tem a visão apenas do retorno financeiro. “Antes de o prefeito achar que a escola de samba tem que dar um retorno, ele deveria se preocupar com saneamento e outras questões”, rebate.

Para Vieira, as escolas de samba historicamente estão associadas com suas comunidades, em um vínculo “embrionário” com as áreas mais carentes do Rio. “O desfile para o povo do morro da Mangueira talvez seja o momento em que eles se tornam notáveis para além de questões associadas à criminalidade e a uma série de coisas negativas. Sem contar que a maior parte das escolas trabalha com projetos sociais”, ressalta. “A Mangueira não faz só carnaval, a Mangueira faz mais que carnaval. Mas se fizesse só carnaval, não seria pouco”, acrescenta.

Magalhães, da Portela, reitera que o carnaval de 2020 será o primeiro depois que a prefeitura deixou de aportar dinheiro nas escolas, como parte de uma política de não injetar recursos em eventos que cobram ingressos. “Ele foi eleito e não tem a obrigação de gostar do carnaval. Só tem de estar em harmonia com a cidade e dizer a verdade. Não pode, como fez, chegar em julho e dizer que não vai ter dinheiro. Em julho, o processo do carnaval já está no meio e eu não posso dizer para o meu carnavalesco que o combinado não vale mais”, diz o presidente da maior campeã do carnaval carioca, com 22 títulos.

O dirigente da Portela destaca, inclusive, que dos R$ 500 mil prometidos pela prefeitura no carnaval de 2019, uma parcela de R$ 50 mil ainda não foi paga. “Enquanto isso o prefeito de São Paulo [Bruno Covas] está deitando e rolando: aumentou a quantidade de blocos e uma escola do grupo de acesso de lá recebe mais do que uma do especial terá aqui”, lamenta, e lembra que a salvação, no ano passado, veio do governo estadual, depois que o governador Wilson Witzel (PSC) repassou R$ 1 milhão a cada escola do grupo especial. Neste ano, Witzel teria prometido elevar o valor para R$ 1,5 milhão.

Magalhães também rebate o argumento de Crivella e afirma que o desfile no Sambódromo “é uma festa de netos de escravos”. “Essa é uma visão miúda, pequena. Na posição do prefeito há uma incompreensão do potencial das escolas de samba que se mistura com preconceito, posição ideológica”, afirma, e cita ainda a importância dos projetos sociais da Portela na comunidade de Oswaldo Cruz, na zona norte do Rio, como o pré-vestibular social, a escola de cinema e aulas de judô e música.

Criticado pela mistura de política e religião, Crivella até tenta fugir do papel de vilão ao mostrar alguma intimidade com o mundo do samba. Lembra ter sido “campeão de carnaval” duas vezes, ao se vestir de tirolês e de cacique: “Eu tenho fotos lá em casa em que ganhei fantasiado, mas [eu era] pequenininho”. Noutra tentativa, diz que foi “o primeiro cantor evangélico que gravou um samba”, depois “gravado por outros sambistas”. Na voz do “malandro” Bezerra da Silva, a canção “Gente fina”, no entanto, foi cerzida como uma propaganda explícita da Universal. Conta a história de um sujeito bem de vida que entra em decadência, fica endividado, mas se converte à igreja, se liberta dos vícios, vira um “dizimista fiel” e, por isso, passa a ser chamado de maluco. O refrão prega à exaustão: “É verdade eu sou maluco/ sou maluco por Jesus”.

Mas a tentativa de se mostrar um apoiador do carnaval não encontra eco entre as centenas de blocos que todos os anos tomam conta das ruas da cidade. Para os organizadores dessas agremiações, que desfilam sem cobrar ingressos, a cada ano as dificuldades impostas pela burocracia municipal aumentam. Rita Fernandes, presidente da Sebastiana, associação que congrega 11 tradicionais blocos do Rio, ressalta que a relação com a prefeitura “só vem piorando”. “Nunca [no governo Crivella] incentivaram o carnaval tradicional, dificultaram os blocos tradicionais com exigências, inventando decretos novos a cada ano e em cima da hora, não fazendo planejamento antecipado”, afirma. Rita cita a exigência, neste ano, de autorização da Polícia Civil, algo inédito na folia carioca e derrubada com a ajuda do Ministério Público. O MP fluminense também atuou para que a empresa de turismo da cidade, a Riotur, aceitasse o envio pela internet dos documentos necessários à liberação dos blocos.

A presidente da Sebastiana ressalta que essas e outras exigências contribuíram para dificultar a captação de recursos pelas 545 agremiações que desfilam nas ruas do Rio. “Não existe apoio financeiro [da Prefeitura]. Os conflitos com a prefeitura e as notícias negativas acabam afastando os patrocinadores, que migram para cidades como São Paulo e Belo Horizonte, que não têm esse problema. Imagem da cidade pesa muito no afastamento do patrocinador”, diz Rita.

“Maluco por Jesus” como em sua canção, Crivella não vê problema em algo que seria considerado uma sandice para qualquer prefeito do Rio: abrir mão do Sambódromo. Questionado se pretende transferir a gestão do espaço para o governo do Estado, ele afirmou que o empecilho é apenas o fato de o imóvel ser foreiro da União. “O governador tem essa pretensão. A posse é do município, mas o Sambódromo é foreiro da União. O governador inclusive disse ‘Vou desapropriar o Sambódromo’. Eu disse: ‘Governador, é foreiro da União. O senhor vai precisar conversar com o Bolsonaro. [Mas] Tenho certeza de que em cinco minutos o senhor resolve’”, disse Crivella, em tom irônico, já que Witzel e Bolsonaro se tornaram inimigos políticos.

Valor Econômico