Pedro Bial sobre Petra: foi sem querer – querendo

Todos os posts, Últimas notícias

Foto: João Miguel Júnior / Agência O Globo

É com a carcaça moída e esfolada de tanta pancada virtual que venho a público acenar: bandeira branca. Amor. Eu peço paz.

Esta semana, experimentei, mais uma vez, o que é estar na parte linchada de um linchamento virtual. Eu, que vivo de acolher as opiniões das pessoas, caí na temeridade de dar a minha.

Eu não peço desculpas, nem peço que me peçam desculpas.

Oscar 2020: Quem é Petra Costa, diretora de ‘Democracia em vertigem’, documentário indicado ao maior prêmio do cinema

Amigos, foi só uma conversa. Dessa vez, eu estava no papel de convidado, em programa matinal de rádio, informal como conversa de bar, marcado pela leveza e irreverência na abordagem dos assuntos. Palavras ditas num papo assim, transcritas para o papel, ganham peso enganoso, o sorriso na voz se perde. Não me queixo, faz parte.

Nem reclamo da prática jornalística de tirar de contexto e contrastar, a fim de buscar a essência da notícia. Parece fácil, mas é um exercício difícil, onde se erra mais do que se acerta. Por exemplo, publica-se antes a frase editada “é uma menina sob as ordens de mamãe”, do que a integral “numa leitura psicanalítica mais profunda, é uma menina sob as ordens de mamãe”.

É do jogo, adiante.

Apanho sem berrar, só não me venham com o machismo de tratar como menina indefesa uma mulher que sabe bem se defender.

“Democracia em vertigem” é um filme flagrante e assumidamente edipiano, e também o seria fosse seu realizador do sexo masculino, assim, à la Oswald de Andrade, “um menino sob as ordens de mamãe”.

Qualquer crítica ou observação sobre um filme narrado em íntima primeira pessoa, será inevitavelmente crítica e observação tanto sobre a obra, quanto sobre a autora e, fatalmente, sobre sua intimidade ali exposta. A propósito, se o encontro entre a mãe da diretora, Marília Andrade, e Dilma Rousseff tivesse resultado menos pífio, o filme teria alcançado outra dimensão.

Quanto à narração, assim como a locução de João Moreira Salles em “No intenso agora” foi chamada desde envolvente a deprimida, assim sucede com a de Petra em “Democracia”, pungente para uns, miada para outros.

Pau que bate em Chico, bate em Francisca.

O mais que eu disse? Que “Democracia em vertigem” abusa do “non sequitur”, estabelecendo relações de causa e consequência entre eventos sem relação causal. Disse também que o filme é a ficção que Petra Costa construiu sobre a história recente do Brasil — uma versão que escolhe, rearranja e omite os fatos constituintes de sua narrativa. E disse que é assim mesmo, documentaristas têm toda liberdade para tal.

Documentários não precisam informar, no sentido jornalístico do termo; documentários podem oferecer uma rara experiência, dar a preciosa oportunidade ao espectador de viver uma vida que não é a sua, ver o mundo por olhos alheios, andar em outros sapatos. Nessa seara, documentários podem ser mais tendenciosos ou menos, e podem ser mais francos ou mais subliminares, de forma consciente ou não, e podem fazer isso com graça e bisturi, ou com cintura dura e facão.

Petra tem estilo. O sujeito que vai assistir a seu filme, querendo ser informado do factual histórico, é avisado logo de início de que se trata da história particular da realizadora — para citar Paulo Coelho, ela compartilha com o público sua “lenda pessoal”. Lenda esta que, por força de laços familiares, ocorre emaranhada às franjas e capilares do poder político.

Filme político num cenário conflagrado, “Democracia em vertigem” tornou-se avatar de nossa boçal polarização.

Tô fora.

Com Oscar ou sem Oscar, Petra Costa é excelente realizadora, com um filme extraordinário, “Elena”, e um ótimo, “Olmo e a gaivota”. O filme que há de brilhar na noite de hoje me parece sua obra menor, mas não importa, importante é o nosso cinema estar lá representado.

A insegurança do governo e seu temor de que a imagem do Brasil possa ser arranhada por um filme são bobagens, tiros nas próprias patas. Além de mais uma amostra do retardo intelectual de nosso governante, como apontei no rádio, é um escândalo que se gaste o dinheiro público para atacar nossa artista de destaque internacional.

Um filme brasileiro no Oscar é sempre bom para o Brasil. Se ganhar, melhor ainda.

Viva o cinema brasileiro.

O Globo