Professora de Guedes diz que Bolsonaro não é liberal
Foto: Taylor Glascock/The Wall Street Journal/
Nos anos 90, Donald N. McCloskey era um clássico exemplo de homem bem-sucedido. Formado na Harvard e consagrado como professor da Universidade de Chicago, onde trabalhou com Milton Friedman e deu aulas ao hoje ministro Paulo Guedes, ele se impunha como um teórico afiado do liberalismo econômico. Casado e pai de dois filhos, McCloskey via chegar a hora de se aposentar e curtir os netos. Mas em 1995, aos 53 anos, sacudiu a academia e sua família ao decidir mudar de sexo. Donald daria lugar a Deirdre McCloskey. Aos 77 anos, a economista transexual conserva intactos seu prestígio acadêmico e sua lucidez analítica — como prova o livro Os Pecados Secretos da Economia, lançado no país pela editora Ubu. Há algumas semanas, em viagem ao Brasil, ela virou notícia ao ter uma palestra cancelada pela Petrobras. Deirdre fala sobre o episódio, a transformação sexual – e defende o legado do liberalismo.
Recentemente, uma palestra da senhora no Brasil foi desmarcada pela Petrobras. O cancelamento pode decorrer de suas críticas ao presidente Jair Bolsonaro ou de sua transexualidade? Sendo bem honesta, não poderia dizer o que aconteceu. Na verdade, depois que as notícias sobre o episódio vieram à tona, a empresa me procurou para gravar uma entrevista e o CEO da Petrobras me ligou. Seria injusto de minha parte acusar, mas entendo por que tanta gente ficou desconfiada. Soube que o governo brasileiro tem feito coisas assim.
A senhora já disse que Bolsonaro é “tudo, menos um liberal”. A agenda econômica do ministro Paulo Guedes não é suficiente para classificar o atual governo brasileiro assim? Não é. Claro que Guedes, que foi meu aluno na Universidade de Chicago, tomou medidas na direção correta para ampliar a liberdade econômica. Mas Bolsonaro tem uma agenda reacionária e autoritária, que vai na contramão do que é ser liberal. No Brasil e em meu país, a palavra liberal tem sido vítima de estranhas distorções. Nos Estados Unidos, ela se tornou sinônimo de socialista. Em lugares como o Brasil, virou definição vaga de um ideário conservador mesclado à defesa da abertura na economia. Veja bem: liberdade, liberdade e mais liberdade é o maior ativo do liberalismo desde Adam Smith ou John Stuart Mill. Bolsonaro não ama a liberdade. Não serei eu quem vai honrá-lo com o título de liberal.
Qual é a importância do liberalismo na evolução da humanidade? É gigante. Até o século XVIII, ninguém julgava possível a existência de uma sociedade sem hierarquias rígidas e senhores. Servos obedeciam a seus donos, súditos curvavam-se a seus reis. Mas alguns povos do norte da Europa Ocidental descobriram que era possível viver melhor e progredir em uma sociedade livre dessas amarras. Aí está o salto promovido pelas ideias liberais, que garantiriam a evolução do Ocidente. Vamos tomar só o exemplo do Brasil. Se o país é muito mais rico hoje do que era no século XIX, não é graças às intervenções maciças do Estado na economia de lá para cá, mas, sim, à atividade dos livres empreendedores. E não estou falando dos grandes capitalistas.
A quem a senhora se refere então? Penso na massa de cidadãos anônimos que produziram riqueza, como as tantas gerações de pessoas pobres que saíram do Nordeste em direção a São Paulo e ali fizeram sua vida. O livre mercado é a parte boa na história econômica do país. A parte ruim é a intromissão do Estado. O governo em geral não ajuda, e muitas vezes fere de morte os empreendedores. Costumo fazer a piada de que o peso desastroso do Estado brasileiro pode ser resumido em uma única palavra: Brasília.
Qual o problema com Brasília? A ideia de construir uma capital no meio do nada pareceu gloriosa no momento em que surgiu. Mas gastanças comprometem as gerações seguintes. Onde quer que haja megalomania governamental, é assim. A China tem mais quilômetros de linhas de trem-bala que todos os outros países. Mas vale a pena investir num sistema tão caro quando boa parte da população vive na pobreza? Não é o Estado, mas aquilo que os cidadãos produzem em busca da riqueza pessoal que traz riqueza para toda a sociedade. O título de meu próximo livro resume o que é pensar como liberal: “Deixe Eu Me Virar Sozinho, e Eu Farei Você Rico”.
Muita gente vê a exuberância econômica da China como sinal de que um Estado forte, conduzido com mão de ferro por uma ditadura, traria crescimento. Faz sentido? Não, está tudo errado nesse jeito de ver as coisas. A China é um sucesso econômico apesar do peso de seu Estado tirânico. Foi a decisão sensata do Partido Comunista, no fim dos anos 70, de implementar o liberalismo na economia que salvou o país. O que faz a China crescer de forma tão extraordinária é a iniciativa privada pujante que constrói os arranha-céus e produtos que impressionam o mundo. Dizer que a tirania é boa para os negócios é ridículo. Na verdade, é preocupante o governo chinês gastar absurdos em projetos como uma grande linha ferroviária que ligará a China à Europa através da Ásia Central. Do ponto de vista econômico, é uma bobagem “recriar” com pompa a velha Rota da Seda.
Por quê? Hoje, são necessários 100 vagões de trem para carregar o mesmo número de contêineres transportados por um único navio de carga. Ou seja, a China está fazendo aquilo que um Estado perdulário sempre faz: encorajar projetos estúpidos. O empresário para de investir num negócio ao primeiro sinal de prejuízo. O governo não: insiste no erro.
Dez anos atrás, o Brasil era exemplo de país bem-sucedido. O que deu errado? Alguns fatos saltam aos olhos. Enquanto um empreendedor gasta meses tentando abrir sua empresa no Brasil, seu concorrente leva apenas horas na Dinamarca. Em muitos aspectos, o Brasil é muito parecido com a África do Sul. As duas nações nunca conseguiram superar seu vício no estatismo. O excesso de regulações torna infernal a vida de quem é dono de um negócio. Os burocratas de Brasília ou Johannesburgo acham que sabem mais sobre como cuidar da economia do que as pessoas comuns. Isso não é verdade. A China e a Índia aprenderam essa lição. As coisas só mudaram quando seus governos, em diferentes momentos, resolveram que era hora de devolver a economia às pessoas.
A ideologia faz bem ou mal à economia? É um atalho para o insucesso. A história mostra como uma economia se torna pujante. Não é por causa de política industrial, planejamento centralizado ou regulação. É pelo vigor criativo de uma sociedade livre. Pensar que o progresso vem da mão amiga do governo, de proteções supostamente necessárias aos trabalhadores — tudo isso é puro nonsense.
Há uma ideia muito difundida de que a corrupção é a causa dos males econômicos do Brasil. Procede? A corrupção tem sua parcela de culpa no mau desempenho do Brasil, mas o maior problema de vocês é outro: o tamanho do Estado. Como, aliás, também acontece na África do Sul, um país que é fantasticamente corrupto. Eu venho de Chicago, que no fim do século XIX era a cidade que crescia mais rapidamente no mundo, mas tinha uma corrupção maluca. Só que o tamanho da máquina do governo era, proporcionalmente, muito menor que no Brasil de hoje. O Estado brasileiro representa em torno de 40% do PIB, enquanto o setor público em Chicago respondia por 10%. Faz muita diferença se os políticos ladrões roubam só um pequeno naco ou boa parte da renda de uma sociedade.
Privatizar a Petrobras é uma boa ideia? Sim, privatizem a Petrobras. É um mito persistente na América Latina dizer que “a terra é rica, mas nós somos pobres”. Recursos naturais são pequenos fatores no sucesso das nações. Senão, Nigéria e Rússia seriam abastadas, e Japão e Suécia estariam fadados à pobreza. A chave do desenvolvimento não está no petróleo, mas em garantir às pessoas acesso à tecnologia e em resistir à tentação de proteger qualquer setor da competição.
Por que defende a tese de que o liberalismo econômico tem efeito limitado sem o liberalismo nos costumes? Historicamente, a liberdade comportamental e a liberdade econômica são valores que caminham juntos e se retroalimentam. Em uma sociedade livre, as pessoas entendem que, por mais que não aceitem o modo de viver ou de pensar de outras pessoas, é preciso deixar que cada um faça o que bem entender sozinho, respeitando-se a dignidade de todos.
A senhora testou os limites disso ao se assumir transexual aos 52 anos. Foi uma decisão difícil? Por muito tempo, eu me sentia mulher e vestia roupas femininas secretamente. Mas vivia com minha esposa, tínhamos dois filhos e um relacionamento normal. Procurei até suporte religioso na tentativa de manter as coisas como estavam. Em um dia de agosto de 1995, porém, decidi que era hora de parar de me sufocar. Enfrentei muitos percalços nos três anos de meu processo de transformação, mas em nenhum momento pensei em voltar atrás.
Fez a cirurgia de mudança de sexo? Com certeza. Mas as pessoas tendem a prestar atenção demais nessa parte do processo, que eu costumo chamar de serviço de encanamento. O mais importante é a longa mudança de comportamento que uma pessoa trans tem de encarar. É o modo como você precisa reeducar sua voz, ou as adaptações no seu rosto. Tive de me submeter a inúmeras cirurgias de adequação facial. Paguei caro pelas minhas maçãs do rosto.
Como foi a reação da família? Tinha certeza de que seria acolhido e aceito. Mas a rejeição foi brutal. Tive de passar um ano dando aulas na Holanda para fugir da pressão de minha mulher. Ela e meus filhos não falam comigo há 25 anos. Tenho três netos, e nunca pude estar com eles. Muitas vezes, liguei para minha mulher e implorei a ela que me encontrasse, sem sucesso. Por outro lado, contei com o apoio incondicional de minha mãe. Aos 97 anos, ela levou cinco minutos para me aceitar como mulher.
E como foi no meio acadêmico? Construí uma obra de análise econômica séria, e sofria pensando que a mudança poderia ferir a credibilidade de meus artigos e ideias perante a academia. Estava preparado até para deixar de ser professor universitário e ganhar a vida como secretária. Felizmente, ao contrário do que imaginava, não tive problemas no trabalho. Na primeira vez em que se reuniu comigo depois que fiz a mudança de sexo, meu chefe na Universidade de Iowa se disse aliviado. Ele brincou: “Meu maior medo era que você virasse socialista”. Não virei.